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domingo, 31 de março de 2013

A RAIVA, COMO VENCER


Neste Mundo, O Ódio nunca, até agora, dissipou o Ódio 

Por


Sarah Doering


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O ódio, deveras, nunca, até agora, dissipou o ódio. Só o amor dissipa o ódio. O ódio só leva à vingança e a vingança leva a mais ódio. Um ciclo de sofrimento é colocado em movimento e pode continuar indefinidamente. Muitos lugares no mundo hoje são uma triste evidência dessa verdade.

O ódio é uma forma extrema de raiva. Os ensinamentos do Buda levam a raiva muito a sério, porque a raiva causa muito sofrimento. Mesmo quando, por conta da raiva, nenhuma ação é executada e aparentemente ela é controlada, uma pessoa que esteja enraivecida pode num instante mudar o ambiente ao entrar num cômodo. Ela traz consigo um calafrio invisível. Quem quer que esteja por perto se contrai e se retrai tornando-se menos espontâneo e mais defensivo. Isso ocorre inconscientemente. Parece claramente uma resposta no nível celular à qualidade de energia que a raiva emite. 

Quando a raiva não é contida e irrompe com violência, o dano é demasiado evidente. Faz alguns anos, o monge Cambojano Maha Ghosananda observou que “Quando a contaminação da raiva realmente se fortalece, perde-se a noção do bem e do mal, certo e errado, de esposos, esposas e filhos. Pode-se até mesmo beber sangue humano.” Essa foi a triste observação que ele fez com respeito à longa guerra civil que havia destroçado o Camboja e matado quase todas as pessoas que ele conhecia. 

FERINDO A SI MESMO

O que é ignorado, com freqüência, sobre os efeitos desastrosos da raiva no entanto, é o dano que ela causa à própria pessoa. A primeira pessoa ferida é sempre aquela que está com raiva. Uma mente com raiva é uma mente com sofrimento. Uma mente enraivecida fica agitada e tensa. Ela fica contraída e estreita. A qualidade da consciência muda. O julgamento e a perspectiva deixam de existir. Todo o bom senso desaparece. A pessoa se sente inquieta e compelida. Nada é satisfatório. O sono é difícil. O corpo fica tenso. 

A noção do eu é engrandecida e da mesma forma a noção do outro. Uma das razões porque a raiva é tão dolorosa é porque instantaneamente cria uma tamanha separação entre o eu e os outros. Uma barreira é estabelecida entre os dois, incapaz de ser superada.

Mas a raiva também pode ser prazerosa. Há um forte sentimento de justiçamento. Pensamentos de auto-justificação assumem o comando. Como dizem os versos do Dhammapada, “Vejam como abusaram de mim! Vejam como me humilharam!” Há um sentimento de desafio e retidão: “Eu estou certo!” Mas, subjacente ao prazer gerado por esses pensamentos auto-justificativos encontra-se a dor de uma mente tão rigorosamente constrita que está fechada a qualquer enlace humano.

As conseqüências da raiva são sérias. A raiva age como um veneno na mente. Ela gera karma ruim e prejudicial. Cada pensamento ou palavra, ou ação enraivecida tem o seu efeito correspondente. Algumas vezes pensamos que ao fazer algo, especialmente se ninguém mais toma conhecimento, aquela ação simplesmente desaparece. Essa noção pode ser um tanto reconfortante se estivermos incertos quanto à bondade daquilo que foi feito. 

A ação aparentemente desaparece. O pensamento foi pensado. A palavra foi dita. A ação ocorreu e se foi. Mas aquela ação coloca em movimento uma cadeia de efeitos subseqüentes que persistem. Tal qual as ondas que correm em todas as direções quando uma pedra é arremessada num lago, da mesma maneira, cada ação intencional tem resultantes que se movem através do espaço e tempo e afetam tudo aquilo que tocarem. Estamos atados àquilo que fizemos e aos efeitos do que causamos. Em outras palavras, somos os herdeiros do nosso karma. 

Se a intenção na mente for benéfica, a felicidade virá depois. Mas se a intenção for prejudicial, então é outra história. Os resultados de uma ação são sempre da mesma natureza que a intenção que a realizou. Como quando plantamos uma semente de maçã, o único tipo de árvore que irá crescer é uma macieira. E aquela árvore irá gerar apenas um tipo de fruto – maçãs. Uma semente de maçã não produz uma laranja ou um pêssego. 

Assim, do mesmo modo, se uma semente de raiva tiver sido plantada na mente, o sofrimento certamente virá depois. Pois, um dia quando as condições forem apropriadas, aquela semente de raiva irá amadurecer e gerar os frutos enraivecidos. E quando chegar o momento apropriado, os efeitos da raiva irão regressar como um bumerangue e golpear-nos uma vez mais. 

A raiva, com freqüência, é comparada ao fogo. Este queima tudo aquilo que lhe dá suporte e depois aparentemente se extingue. Mas o fogo algumas vezes pode ficar latente, escondido, até que as circunstâncias se juntem e façam com que o fogo irrompa novamente.

Eu entendi essa analogia muito melhor depois de uma viagem a Durango no Colorado, há alguns anos atrás. Fazia pouco tempo que nas montanhas acima da cidade havia ocorrido um incêndio na floresta, que havia queimado tudo sem controle. Eu fui até lá para ver as encostas enegrecidas. Não havia nada de verde em nenhum lugar, apenas árvores carbonizadas e cinzas. Uma paisagem grave. Mas ainda mais sério foi o comentário de um dos guardas florestais. Ele disse que embora não houvesse mais sinal do fogo, com certeza ele estava ardendo em algum lugar profundo entre as raízes, e mesmo um inverno rigoroso com muita neve não o apagaria. Ele disse “Nós não sabemos onde e quando ele irá reaparecer então, temos que estar sempre vigilantes.” Da mesma maneira, quando as condições forem apropriadas, os efeitos da raiva reaparecerão. 

A lei de karma também diz algo mais que é grave. Diz que ao longo do tempo a nossa personalidade e caráter são moldados por aquilo que pensamos e dizemos e fazemos. Cada momento de raiva aprofunda a marca da raiva no contínuo mental. Isso significa que cada vez que sentirmos raiva, será mais fácil sentir raiva outra vez. Uma reação enraivecida, repetida com freqüência, pouco a pouco se torna um hábito. Começamos a perceber cada vez menos coisas que nos dão prazer, tanto na nossa vida como nos outros, e nos tornamos cada vez mais irritadiços e negativos. E não é de se estranhar que as pessoas comecem a nos evitar e que nos sintamos isolados e solitários. Enquanto isso, as coisas desagradáveis continuam acontecendo e somos incapazes de compreender que elas são o resultado das nossas próprias ações. 

A nossa personalidade e as nossas próprias vidas foram moldadas – e continuam a ser moldadas – pelas escolhas que fazemos. É, portanto, muito importante refletir sobre a nossa própria responsabilidade em relação a como as nossas vidas se desenrolam. As nossas ações são a única coisa que realmente possuímos. Nós herdamos os resultados delas e colhemos o que quer que semeemos. 

LIBERTANDO-SE DA RAIVA

Apesar disso ... não estamos condenados a repetir o passado. 

A qualquer momento esse padrão pode ser rompido. Pois, quando temos atenção plena, vemos que a cada momento temos escolha. Devo reagir com raiva? Ou devo responder de modo gentil, com amor?

Quanto mais praticarmos e quanto mais reflitirmos sobre as nossas vidas e as vidas à nossa volta, maior a nossa compreensão sobre a profundidade da lei de karma. Passaremos a ver porque nunca deveríamos responder à raiva com a raiva. Um lama Tibetano observou que responder com raiva à raiva de uma outra pessoa é como seguir um lunático que salta num abismo. Se é loucura ele fazer isso, é ainda mais louco eu seguí-lo!

No silêncio que desfrutamos neste retiro, existe uma oportunidade contínua de observar a mente e os meios que empregamos para nos relacionarmos com o mundo. Existe uma oportunidade de ver como surge a resistência contra aquilo que não gostamos. A raiva é uma forma de resistência ao momento presente. Quando não gostamos daquilo que está presente, nos enrijecemos como em oposição e tentamos nos livrar daquilo, colocando-o de lado.

A raiva tem variados matizes e assume muitas formas distintas. Elas incluem a irritação, a frustração, a fúria, o ódio, o amargor, a tristeza, o cinismo e a impaciência. Além disso, há o julgamento. A mente julgadora ocorre com freqüência – julgando a si mesmo, julgando os outros. E a culpa, também, é uma forma de raiva. É a raiva para consigo mesmo. 

Todos esses diferentes tipos de aversão podem ser chamados de emoções negativas. Mas, negativo neste caso não quer dizer mau. Uma emoção negativa é simplesmente aquela que nega ou refuta. Quando a raiva diz “Eu não gosto disso. Eu não quero isso!” ela está dizendo NÃO para a vida. Pois a vida naquele momento ocorre de um certo modo e esse modo está sendo rejeitado. 

A vida insiste todo o tempo em nos apresentar coisas que nós nunca teríamos escolhido se tivéssemos escolha. Pode ser uma posição sentada dolorosa, o estomago embrulhado, um vento gelado, notícias tristes ... A questão então, é como não reagir com aversão, como não ficar automaticamente com raiva ou triste, ou com medo. 

A prática toda que estamos realizando conduz à libertação da raiva e a todo tipo de aversão. Mas nesta noite gostaria de focar especialmente em dois métodos: o desenvolvimento do amor bondade e o desenvolvimento da atenção plena. Essas duas práticas podem ser desenvolvidas simultaneamente. Vamos analisar a atenção plena primeiro. 

Nós precisamos observar as nossas mentes com atenção. Nós queremos capturar a raiva, se pudermos quando ela ainda é pequena, exatamente quando ela começa a se desenrolar. Se exatamente a primeira sensação de desagrado for notada, ela poderá desaparecer antes que cresça como uma irritação. Ou, se já for uma irritação, poderá ser notada e confrontada antes que cresça como raiva. Ou, se já for raiva e se for vista, poderá ser capturada antes que jorre para fora em forma de algum ato do qual mais tarde nos arrependeremos – uma nota mal humorada, palavras grosseiras ou uma porta batida. A fúria e o ódio, com toda a intensidade, não surgem do nada. Eles evoluem de uma sensação desagradável momentânea, que passou desapercebida e que rapidamente cresceu em intensidade.

O ponto no qual tomamos consciência da raiva depende da qualidade da atenção. Quanto mais cedo sintonizarmos e compreendermos que a raiva está presente, mais fácil será controlá-la e abandoná-la. Mas se estivermos perdidos em pensamentos, perdidos em alguma estória sobre nós mesmos, não haverá contato com o que de fato está ocorrendo no presente momento. 

Certa vez eu estava num engarrafamento de tráfego. Uma longa fila de carros estava imóvel, presa. Eu vi um homem num carro numa outra pista que estava não só buzinando, mas também batendo no para-choques do carro da frente para que ele saísse da frente. O homem estava com o rosto em chamas, agitando os punhos para o outro motorista, quando veio um policial para controlá-lo. Aquele homem estava tomado pela raiva, ele nem se deu conta que o motorista à sua frente estava tão preso no engarrafamento quanto ele.

TRABALHANDO COM AS DIFICULDADES

Agora, aquilo que vou dizer sobre trabalhar com a raiva se aplica a qualquer emoção aflitiva, portanto, se a raiva não for a sua principal preocupação no momento, mas o desejo ou o medo, ou a inveja, ou alguma outra coisa, por favor preste atenção com cuidado, pois as mesmas palavras são aplicáveis. 

Se você estiver sentado e de repente acordar para o fato de que está com raiva, com muita raiva – dê um passo para fora da estória que está se desenrolando na sua mente. Deixe de lado o pensar. Faça uma pausa e permaneça com a sensação de raiva, não importa quão desconfortável ela for. A sensação poderá ser de total repugnância, uma massa confusa, pesada, quente e que queima. Cada emoção possui o seu toque particular e quando ela assume o comando, parece ser uma entidade sólida, substancial, que não tem fim. 

Na verdade, a raiva não é sólida, mas uma combinção de diferentes componentes: pensamentos, que fazem a estória ficar dando voltas; um toque emocional em particular; e numerosas sensações corporais. E tudo isso, assim como a própria raiva, é transitório. Surge e desaparece, surge e desaparece. 

Tente deixar de lado os pensamentos. Abandone a estória que está se desenrolando na mente: “Ele fez isso, ela disse aquilo, isso não é justo ... “ Esses pensamentos são a expressão da raiva e também o seu alimento . Abandone-os e traga a atenção para as sensações no corpo. Permita-se sentir, sinta completamente a emoção, diretamente. Olhe para ver o que está acontecendo. Há calor, há pressão, há tensão, há contração? Onde no corpo estão sendo experimentadas essas sensações? Elas se movem? Elas mudam? Qual a sua relação com elas? Há resistência contra elas? Se houver resistência, permaneça com ela e sinta-a. 

Se o pensamento for tão forte que fica puxando-o de volta para a estória, faça uma pequena notação mental ‘pensando,’ ‘pensando’. A notação mental mantém viva a atenção plena e é um cordão de sanidade. Ela nos recorda do que na verdade está acontecendo exatamente neste momento – que, muito simplesmente, são pensamentos enraivecidos surgindo na mente. 

Quando a raiva for forte e custar muito trabalho permanecer no presente, respire fundo algumas vezes, respire através da raiva e depois regresse para as sensações no corpo quando puder. Acima de tudo, aceite o fato de que a raiva está aqui. Abra-se para ela. Dê permissão, com suavidade. Ficar contrariado e enraivecido com a raiva só aumenta a raiva e aumenta a dor. 

Se a emoção for demasiado intensa para ficar sentado, faça meditação andando. Caminhe rápido. Traga a atenção plena para o caminhar. Ou pare e desfrute da natureza. Olhe para os campos e as árvores contra o céu. Olhe para os pássaros e as pequenas criaturas. Mas não se entregue aos pensamentos. Tenha atenção plena. Pois quando temos atenção plena, não há raiva. A raiva desaparece. Isso é verdade para qualquer emoção negativa. Quando a atenção for incondicional, a negatividade simplesmente desaparece. 

APENAS UMA PEQUENA FOLHA ...

Faz muito anos, eu tive uma dessas experiências que fez com que o meu entendimento da prática mudasse significativamente. Foi numa época em que eu estava muito triste. Parecia que o fim do mundo havia chegado para mim. Alguém que eu amava muito havia partido e era improvável que fosse voltar. 

Caminhando no jardim em frente à minha casa eu distraída peguei uma folha dum arbusto. E depois, por alguma razão, parei e olhei para a folha na minha mão. Minha atenção foi de alguma forma atraída pela folha e comecei a estudá-la com cuidado. Eu fiquei parada, olhando para a pequena folha, as suas veias, as bordas delicadas, a sua suavidade, o seu brilho, o seu verde intenso. E de repente compreendi que aquela tristeza pesada e obscura que estava me deprimindo, havia partido. Meu coração estava completamente leve e em paz. 

O contraste entre ser engolida pela tristeza e a repentina libertação para a leveza e a paz foi tão forte que o pensamento surgiu: “Essa folha é mágica?” Eu não compreendi em absoluto o que havia acontecido. A mudança foi tão grande, tão completa, que supus que ela tinha de ser causada por algo fora de mim mesma. E com cuidado eu trouxe a folha para dentro da casa. Eu não havia compreendido que a mudança do sofrimento para a paz havia acontecido simplesmente porque por alguns momentos a minha mente esteve focada e plenamente atenta. 

Na manhã seguinte, eu peguei uma outra folha para ver se ela tinha o mesmo poder, como se a felicidade repousasse numa folha. É claro que não funcionou. Eu só fui compreender muito mais tarde que quando a atenção plena é completa, não há tristeza, não há raiva – pois não há pensamento. 

O pensamento e o entregar-se ao ciclo de pensamentos, permitindo que eles sigam indefinidamente, é que faz com que nos sintamos infelizes e nos mantém infelizes. Quando o pensamento é cortado, as aflições mentais desaparecem. Dukkha é substituído pela felicidade de uma mente alerta e tranqüila. 

Aquele momento com a folha foi uma grande lição para mim. Pois foi através disso que pude enxergar o poder extraordinário da atenção plena – o seu poder curativo. Quando a atenção está totalmente com algo, qualquer coisa, não há espaço na mente para a tristeza ou para a raiva, ou qualquer outra emoção negativa. Só a atenção está presente. E a paz que provém da completa atenção está acima de qualquer comparação. 

Se tivesse sido possível transferir aquele tipo de atenção cuidadosa, que havia sido dada para a folha, para qualquer coisa que eu fizesse e sustentar essa atenção, a tristeza não teria nunca retornado. Mas é claro, ela retornou. Aquele momento de presença completa foi apenas um descanso para a minha mente. Foi um tremendo alívio, mas não deu um fim à minha dor, e nem poderia. Para que isso, acontecesse, algo mais era necessário. 

Na próxima vez que a tristeza surgiu, ao invés de buscar pela cura mágica numa folha, como (para ser honesta) eu continuei fazendo por vários dias, eu deveria ter me voltado para o próprio sentimento de tristeza. Eu deveria ter estado atenta permitindo a mim mesma sentí-lo completamente. A menos que seja possível ficar plenamente atenta o tempo todo, do que eu não era capaz, a única forma de finalmente resolver qualquer emoção aflitiva é enfrentá-la de frente, abrir-se para ela, e trazê-la totalmente para a consciência. Quando for completamente compreendida, ela irá se dissipar e desaparecer. Em geral não é possível fazer isso de imediato, é óbvio. Pode ser demasiado doloroso. Então, temos que respeitar as nossas limitações e seguir num passo apropriado. 

Ao mesmo tempo, é importante compreender, quando estamos numa situação desagradável que não pode ser mudada, que quanto mais rápido a resistência for abandonada, tanto mais rápido estaremos em paz. É bom senso, nada mais. De outro modo, continuaremos batalhando para viver num mundo que não existe, um mundo de fantasia de como desejaríamos que as coisas fossem, mas não são. Estaremos em dessintonia com aquilo que está acontecendo no momento e o sofrimento será inevitável.

O abandono, com a rendição à realidade do momento presente, é a única coisa realista a ser feita. Aceitar uma determinada situação não significa que você precisa gostar dela. Significa simplesmente que, quer gostemos ou não, ela está ali. 

UMA VIDA NOTÁVEL

A história da vida de Maha Ghosananda, o monge Cambojano que mencionei antes, ilustra com beleza tudo aquilo que tenho tentado explicar. Ghosananda conheceu diretamente aquilo de pior que a raiva é capaz de fazer. Ghosananda experimentou os efeitos horríveis da raiva e devido à desesperança decidiu aprender a amar. 

Como jovem monge, Ghosananda primeiro estudou os suttas, [discursos]. Quando chegou a hora de começar a praticar meditação, ele foi mandado para um monastério na Tailândia. Foi na Tailândia, um lugar seguro, que ele primeiro ouviu sobre as hostilidades no Camboja. Ele descobriu que os seus pais e todos os irmãos e irmãs haviam sido assassinados. À medida que o tempo foi passando, ele ficou sabendo da morte de muitos dos seus companheiros, monges e monjas. E é claro, ele disse, que chorou por tantas perdas. Ele chorou pelo seu país. Ele chorou, ele disse, todos os dias e era incapaz de parar de chorar. Mas o seu mestre o encorajou a parar. “Não chore,” lhe disse, “Tenha atenção plena.” Isso pode soar como falta de compaixão, mas foi um bom conselho. 

“Estar com atenção plena,” disse o mestre, “é como saber quando abrir e fechar as suas janelas e portas. A atenção plena nos diz quando é o momento apropriado de fazer as coisas ... Você não pode parar a guerra. Ao invés disso, lute contra os seus impulsos de tristeza e raiva. Tenha atenção plena. Prepare-se para o dia em que você poderá ser verdadeiramente útil para o seu país. Pare de chorar e tenha atenção plena!”

Ghosananda disse que ele ficou muito tempo sentado refletindo sobre o extermínio e naquilo que o seu mestre havia dito. Ele compreendeu que os mortos estavam mortos. Eles estavam no passado. Haviam partido. Toda a sua família, todos os seus amigos se foram. Ele pensou no futuro e viu que ele era totalmente desconhecido. Ele decidiu fazer a única coisa possível, tomar conta do presente da melhor forma que ele podia. “O presente é a mãe do futuro,” ele dizia. “Tome conta da mãe. Assim a mãe tomará conta dos filhos.” Então, ele regressou para a prática, de volta para a respiração. Pois, dizia ele, “Respirar não é o passado ou o futuro. Respirar é agora.”

As lágrimas pararam. “Não há tristeza no momento presente,” ele explicava. “Como poderia haver? A tristeza e a raiva se referem ao passado. Ou elas surgem pelo medo do futuro. Mas elas não estão no momento presente. Elas agora não existem.”

Durante nove anos ele deu seguimento à sua prática nas florestas da Tailândia, isolado numa cabana, lá ele conquistou a claridade e estabilidade mental, o entendimento e o amor que são o fruto de profunda meditação. 

Quando a guerra estava chegando ao seu fim, ele regressou ao Camboja. Milhões de civis haviam morrido devido aos bombardeios, à fome, aprisionamento e tortura. Era uma nação de ódio e medo e sofrimento. Ghosananda foi para um campo de refugiados próximo da fronteira. O campo estava abarrotado de pessoas que haviam fugido dos exércitos inimigos. O esgoto corria a céu aberto. Água e comida eram escassas. As pessoas estavam desesperadas, sem saber o que fazer. Ele supervisionou a construção de um grande templo improvisado feito com bambu. 

Testemunhas dizem que milhares de refugiados se juntaram e choraram quando esse único monge budista nos seus mantos de cor ocre recitou os versos “O ódio nunca até agora dissipou o ódio. Apenas o amor dissipa o ódio. Essa é a lei antiga e inexaurível.” E ele disse mais, “agora é a vez da paz e não de mais ódio. Que não hajam mais violências ...”

De imediato, ele começou a trabalhar para ajudar a restabelecer a sociedade fraturada, reconstruindo templos, liderando marchas pela paz, encorajando as pessoas a dar um fim às hostilidades, a abandonar a raiva e viver em paz. Quase da noite para o dia ele se tornou uma figura pública e agora é conhecido no mundo todo como um porta voz da não violência e da reconciliação. Ele algumas vezes é chamado de “o Gandhi do Camboja.”

Deixar de lado o passado e aceitar as perdas é algo muito doloroso de ser feito. Mas apegar-se à tristeza e à auto-piedade e continuar a lamentar aquilo que se foi ou que poderia ter sido simplesmente corrói a força. Rouba toda a energia criativa de viver. 

O rei do Camboja ficou profundamente deprimido devido ao imenso sofrimento do seu país. Ghosananda foi perguntado que tipo de conselho ele daria ao rei. Camboja, é claro, é (ou foi) um país budista e seria algo bastante normal para o rei solicitar um conselho de um monge. 

Ghosananda disse: “Nós sempre lembramos ao rei para estar no presente. Ele sempre pensa no futuro, ele sempre lamenta o passado e assim sofre. Se ele permanecer no momento presente, ele será feliz. A vida existe no momento presente. Inspirando, momento presente. Expirando, momento presente. Não podemos respirar no passado,” ele disse. “Não podemos respirar no futuro. Só podemos respirar aqui e agora.” 

Eu gosto dessa história do rei porque é tão simples. O conselho dado ao rei é o mesmo conselho dado para você ou para mim. Esteja no presente, tenha atenção plena, e a tristeza e a raiva desaparecerão. 

CURANDO AS FERIDAS

Voltar-se para o presente e aceitar o inaceitável na verdade acaba sendo um alívio. Se vocês alguma vez fizeram isso, sabem o que eu quero dizer. Significa que não há mais necessidade de batalhar. Um fardo, que nem sabíamos estávamos carregando, é deposto. As coisas são como são. Nós as aceitamos porque são um fato. É a única coisa realista a ser feita. E assim seguimos com a vida. 

Isso toma tempo, é claro. Como disse Ghosananda, “Guerras do coração sempre demoram mais para esfriar do que o cano de uma arma ... Nós precisamos curar através do amor ... E precisamos ir devagar, passo a passo ...” Talvez a aceitação possa acontecer só depois que o sofrimento todo da perda, decepção e desesperança tenha sido experimentado.

Mas, mesmo assim, a cura não é fácil. Pois o que é necessário é nada menos do que uma transformação da mente. O perdão é necessário para que o ódio e a aversão sejam abandonados e substituídos pelo amor. O passado tem de ser perdoado, a vida em si tem de ser perdoada, por ela ser como ela é. E metta, ou amor bondade, tem de ser estimulado. 

É necessário que desenvolvamos metta para nós mesmos, metta para aqueles à nossa volta, metta para a nossa situação na vida. Como desenvolver um coração pleno de metta se torna a questão central. Para começar, o método é refletir e ter claro que isso é o que você realmente quer fazer, deixar o sofrimento de lado e ser benévolo com você mesmo e com os outros. Uma intenção clara, repetida com freqüência, coloca a mente na direção que queremos ir e ajuda a manter-nos seguindo adiante. 

O Dalai Lama menciona uma frase que ele repete a cada manhã ao despertar. “Que todos os meus pensamentos, palavras e ações hoje não causem malefícios a ninguém, mas benefícios a todos.” Com o tempo e repetição, essa frase começa a atuar como uma correnteza subjacente na mente, re-direcionando silenciosamente a intenção, afastando-a do malefício e dirigindo-a para a expressão do amor. 

O que ajuda também, é refletir sobre as desvantagens da raiva, refletir sobre todas as diferentes razões pelas quais sabemos que as emoções negativas causam malefícios. Refletir sobre isso projeta na consciência os seus efeitos danosos e reforça a determinação de evitar todas as formas que expressem a aversão. 

Praticar a meditação de metta intensivamente durante um longo período de tempo pode ajudar, ou mesmo praticá-la durante uma hora por dia. Ou começar cada sessão de meditação com frases de metta. Se você sente freqüentemente raiva de si mesmo, cheio de autocrítica e auto-julgamento, você poderia começar cada sessão de meditação com frases de metta tradicionais dirigidas para você mesmo. Isso pode parecer pouca coisa, mas se for repetido com fé, com o tempo irá causar um impacto significativo. Com o tempo haverá menos auto-julgamento, menos auto-condenação e mais auto-respeito. 

Sentir metta por si próprio não só é importante, mas necessário para que a prática evolua. E por outro lado a prática intensifica o sentimento de metta. Pois com a prática a confiança e convicção em nós mesmos começa a crescer. E essa confiança crescente proporciona um senso de valor próprio e apreço, permitindo que nos voltemos mais facilmente para os outros com o mesmo respeito e apreço. 

ATENÇÃO PLENA E METTA

A mais importante fonte de metta, e essa pode ser uma surpresa, é a prática da atenção plena. A atenção plena está intimamente ligada a metta e possui até um aspecto de metta dentro de si. Pois estar com atenção plena é estar completamente aberto e receptivo a qualquer coisa presente. Um ditado Zen Chinês compara a atenção plena a um anfitrião que está recebendo amigos em casa para uma reunião. O anfitrião fica na porta e cumprimenta cada convidado conforme eles entram e se despede de cada um deles quando partem, com total atenção, um após o outro. Não há preferência por um em relação ao outro, antipatia por um ou outro. Há apenas o interesse genuíno e a atenção para com quem quer que seja que cruze a porta. 

A atenção total é uma grande dádiva. Quando você dá para alguém a sua total atenção, você está-lhe oferecendo respeito. Proporcionar atenção incondicional a outrem é aceitar aquela pessoa totalmente e reconhecer o seu valor. Nesse momento de completa atenção, um profundo vínculo humano é sentido. A outra pessoa sente esse interesse compassivo e provavelmente irá corresponder.

Com o tempo, a prática da atenção plena muda os antigos modos de percepção. Pois num momento de atenção plena, as memórias e o condicionamento passado são postos de lado. Cada momento de atenção plena é um momento de pureza no qual, por aquele instante, vemos com novos olhos a maravilha e a beleza daquilo que aqui está.

Isso é verdade não só para seres vivos, mas para objetos inanimados também. Krishnamurti, um mestre espiritual da Índia, certa vez disse que se você pegar uma pedra do chão, uma pedra comum, e colocá-la sobre a mesa na sua sala de estar e depois olhar para aquela pedra com bastante cuidado todas as vezes em que você estiver na sala, ao final de um mês você verá aquela pedra como sagrada. O poder da atenção plena nos conduz para além da superfície, para a essência de como as coisas são. 

Quando a atenção plena se tornar mais constante e precisa, alguém com quem no passado estivemos enraivecidos passará a ser visto não como um inimigo, mas como um ser que está ferido e confuso. (E se nos conhecermos pelo menos um pouco, saberemos que nós também estamos freqüentemente feridos e confusos). Compreenderemos que como nós estamos buscando a felicidade, aquela pessoa também quer ser feliz – mas não sabe como. 

Precisamos nos colocar no lugar dos outros. Como os Índios Americanos costumavam dizer, precisamos caminhar uma milha com os sapatos daquela pessoa e depois nos perguntarmos: “Como eu responderia a isso.” A resposta honesta pode muito bem ser que nós faríamos exatamente a mesma coisa. Pois quanto mais nos sentarmos em silêncio observando a mente, mais evidente se torna a infeliz descoberta, que nós mesmos somos capazes de todo o tipo de pensamentos maléficos. 

Isso não significa que não devemos nos erguer em oposição à injustiça. Mas sim, que devemos fazer isso não com raiva, mas sob a perspectiva de metta, em busca de uma solução para o problema. 

Aprender a amar os nossos inimigos não é fácil. Como Ghosananda escreveu, “Eu não questiono que amar os próprios opressores pode ser a atitude mais difícil de ser praticada. Mas é uma lei do universo que a retaliação, o ódio e a vingança só dão continuidade ao ciclo e nunca o param. Reconciliação não quer dizer renúncia aos direitos e condições, mas sim, que usamos amor em todas as nossas negociações.”

Para fazer isso é necessário grande humildade. Pois, como ele diz, “Nós precisamos nos ver nos outros. O que é o inimigo senão um ser ignorante, e nós mesmos também somos ignorantes com relação a muitas coisas ... Só metta e a atenção plena correta podem nos libertar.”






Todas as referências a Maha Ghosananda podem ser encontradas no livro “ The Future of Peace, Chapter 6,” por Scoll A. Hunt, Harper Collins (2002).

Fonte: Insight Journal, Outono 2004 – Barre Center for Buddhist Studies. Baseado numa palestra dada no Insight Meditation Society – Forest Refuge no inverno de 2003.

www.dharma.org





Revisado: 2 Abril 2005 

sábado, 23 de março de 2013

O PERIGO DO DESEJO EGOÍSTA - parte 2


O Budismo não combate o desejo como se costuma pensar, numa primeira visão superficial. Ele diagnostica a causa do sofrimento como sendo o desejo; essa é uma das quatro nobres verdades. Mas não é qualquer desejo nem qualquer tipo de desejo; é preciso saber que espécie de desejo seria essa. E além disso, o caminho para libertar-se do sofimento se dá através do nobre caminho óctuplo, não da simples oposição ao desejo.  O caminho óctuplo é o que leva à cessação do sofimento, da ignorância, das impurezas; é o que leva à iluminação.

Não é todo e qualquer desejo que é considerado como prejudicial. Um grande exemplo disso é a definição budista de amor: “amor é o desejo de que o outro seja feliz”. O amor é um desejo que é requerido, que não é prejudicial. Já o desejo que causa o sofrimento é outro tipo específico de desejo.


No cânone pali essa palavra normalmente traduzida simplesmente como desejo é tanha que literalmente significa sede, mas uma tradução mais apropriada que pode ser vista em muitos textos que é ânsia; também aperecem “desejo sedento”, “desejo insaciável”, etc. Se refere, desse modo, especificamente à ansiedade sedenta, ao desejo egoísta, à paixão cega, etc. Tem como sinônimos lobha (cobiça; paixão) e raga (também traduzido como cobiça ou paixão). É uma das três raízes (mula) de estados prejudiciais na mente.


Espero que o texto abaixo (anterior) seja o primeiro de uma série que poderá ajudar um pouco na indispensável compreensão desse tipo de desejo, como ele é prejucial, sua origem, seu fim e o modo adequado de se comportar em relação a ele afim de atingir o objetivo supremo.