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quinta-feira, 25 de outubro de 2018

A Compreensão Daimoru

Por R. Hiroshi

Hoje vou explicar aos senhores a compreensão daimoru, que chamo daimoru porque é a compreensão que eu adoto.

Antes devo dizer que uma compreensão não é uma escola, uma filosofia, nem uma religião. No japão existem várias compreensões dentro de uma mesma escola, parecido com os católicos que têm os agostinianos, os franciscanos e assim por diante, ou em uma denominação cristã existem pós-tribulacionistas e pre-tribulacionistas ou em escolas diferentes, assim como existem judeus hassidistas, ortodoxos, nazarenos, messiânicos e entre os messiânicos exitem os unitaristas e trinitaristas, por exemplo. Não é uma divisão drástica como os hindus impessoalistas e os personalistas. Uma compreensão é um ponto de vista. Que pode ser adotados por uma escola, ou muitas escolas, ou parte de uma escola ou pessoas de fora da escola ou fora do budismo. Explicado esse ponto, para que ninguém pense que fundei uma escola a partir desse ponto de vista... Vamos ao que interessa.

Daimoru é uma recuperação moderna do ponto de vista da escola dhyana antiga. Essa compreensão surgiu recentemente, mas talvez seja bem mais antiga, talvez até ela seja mais ortodoxa que a própria ortodoxia ou que se tem como ortodoxia. Ela diz sobre o ato de comer, de se alimentar de uma doutrina, de preencher os quadrantes da mente com uma doutrina. Ela passa primeiro pela boca onde precisa ser mastigada depois engolida, depois vai ao estômago onde é digerida e ao intestino onde é absorvida e o excesso é excluído através do anus. Ela trata o ensinamento como linguagem operacional e a linguagem como alimento da mente (o que Buda chamou de meios hábeis e de preenchimento dos quadrantes mentais).

Daimoru significa grande molar. É um detalhamento do primeiro momento da digestão na boca. Você pega um bocado, não dá para pegar tudo de uma vez certo? Você corta com os dentes da frente, depois você mastiga. E lá atrás existem grandes molares e muita força onde se tritura e mistura formando uma pasta que vai ser engolida. Então você pega outro bocado e a mesma coisa e assim por diante e adiante, vai se alimentando, compreendendo. Isto é essa compreensão.

O que vai ser feito pelo intestino é outro trabalho, digamos, é individual, particular. Nós oferecemos o prato cheio, e ensinamos a mastigar bem, isso que é importante nessa compreensão. Ou seja se a pessoa vai praticar profundamente, tomar aquilo como religião ou filosofia ou apenas intelectualmente, sobre isso não é da nossa conta porque nada podemos fazer, a decisão é dela. Mas quando ela está comendo nós dizemos "olhe como se mastiga" e aí vem o grande molar que deve pulverizar, triturar, misturar, gerar uma pasta. As outras horas da digestão nós não podemos ver certo? Então é nisso que podemos ajudar.

E o que significa essa visão, essa compreensão, essa abordagem? É uma abordagem. Significa que tomamos o dharma como dharma, isto é, como um ensinamento prático e ponto final, nós chamamos de terapêutica ou procedimento, mas aqui no ocidente tem sido chamado de psicologia budista e alguns livros dentro dessa abordagem ou mesmo muito fora dela levam um título parecido com isso. Não está incorreto, porque são várias psicologias diferentes. Porque é como a psicanálise. Existe Freud e vários continuadores que diferem dele, temos Jung, Reich, Winnicott, no Brasil existe a psicanálise integrativa que faz uso de várias correntes teóricas. É parecido com isso. 

E o que é isso? Hoje aqui numa reunião onde só vemos homens é algo como se via no tempo de Buda na maioria dos casos, monges, todos homens, reunidos... E num momento Buda mudou isso. Buda foi adaptando seus procedimentos às situações conforme iam acontecendo. É isso. Nossa visão é que existem muitos budas, isto é muitos despertos, e entre esses muitos graus de despertamento, e eles deixaram ensinamentos, linhagens, tradições, até livros. Não estou dizendo que tudo isso é canônico, não estou falando de religião, definitivamente. Estou falando de uma realidade que aconteceu e continuou acontecendo. Então temos muitos procedimentos, e muitos budas, é muita coisa, muita informação, muitas práticas, muitos métodos. Nós precisamos saber qual é o alimento certo e além disso mastigar corretamente e digerir, porque muito dele ainda será inútil e terá que ser jogado fora. Se você simplesmente vem aqui e engole não é bom, será pouco o proveito.

Então nós separamos ao longo de milênios os componente mais nutritivos e indispensáveis desse alimento, precisa que haja um cozinheiro experiente que tenha aprendido de outro e assim por diante. Então oferecemos esse prato, que evoluiu ao longo dos séculos e de acordo com o que temos hoje, das comidas, das regiões, das limitações alimentares dos indivíduos, mas o mais importante é mastigar bem. Ou seja, fazer a nossa parte consciente da digestão, plenamente e corretamente para aproveitar ao máximo esse alimento. O importante é o que faz com isso. Então nós damos algo intensivo, intencional e consciente. Então a pessoa deve praticar. Porque é uma auto-psicanálise profunda, uma terapia que a pessoa é que deve administrar a si mesma.

Em que consiste isso? Em praticar a essência da terapia do Buda, dhyana, de instante a instante. No theravada se chama sati. Mas nós vamos além de sati que é atenção vigilante: nós vamos integrar sati a tudo, toda ação, todo pensamento, toda fala, toda percepção, etc.. Mas todos não já fazem isso? Eu devolvo a pergunta: fazem? Ou ainda, com que regularidade? Constante ou intermitentemente? Não serve. Esse é o treino, sati desse jeito serve de treino. Dhyana é a realização do que se propôs a treinar, estar desperto, acordado, percebendo a realidade como ela é. É difícil? E de instante a instante? Aí sim, agora pode dizer que é difícil. O resto e fácil. Ou você não acha fácil? Se você acha difícil atenção vigilante então isso aqui deve ser uma maratona para você. Por isso que o centro é o grande molar, mastigar e mastigar a essência do método. O grande molar esmaga, destrói, pulveriza os obstáculos. Consiste nisso.

E qual é a essência do método? Bom, há duas partes. Uma é esta, estar acordado. E para isso você tem que ter sido levado a acordar por alguns instante para saber como é, precisa ter despertado, visto o que é ilusão e o que é real, visto o que é bom e o que é mal. Então veja que isso é muito diferente daquele método de ficar se olhando como um buda, tentando agir como um buda, acreditando já ser um buda, é o oposto, é encarar a realidade feia, discernir a corrupção, é como a contemplação de cadáveres, é ver os animais em luta dentro de si mesmo e saber separa-se deles, é o contrário de se unir tudo, de dizer que tudo é luz e paz e amor. 

Dhyana é estar separado, abandonar, largar, toda visão condicionada do mundo, todo prazer e desprazer, todo desejo de ganho e perda, Buda chama de abandonar, aqui chamam de desapegar (um termo impreciso), nós falamos de se separar de toda corrupção. Então no primeiro procedimento já são dua partes: primeiro abandonar a visão condicionada e segundo permanecer acordado na visão incondicionada. Sim é um intensivo senhores.

A outra parte é que para a pessoa receber isso, a única coisa que pode parecer com algo religioso é isso: para receber ela tem que tomar oito ou dez preceitos ou votos durante o aprendizado e depois os cinco ao sair do período de recebimento. Mas porque isso? Porque essa terapia tem uma parte moral, sem a qual não é completa e não sendo completa não dá certo é perda de tempo, não adianta. Então para a pessoa receber essa instrução ela precisa apenas ter um compromisso ético, com dana, sila e bhavana.

O que ´´e isso, o outro lado da terapia, tanto para aplicar em outros, se não não tem sentido, quem quiser a libertação e o bem apenas para si por favor vá embora nesse momento, não é bem vindo e está correndo risco aqui (pois o seu ego vai crescer um pouco mais com isso em vez de diminuir). Então são três coisas básicas que o primeiro buda ensinou, a moral, a generosidade e o despertar ou o processo para ele que vulgarmente se tem chamado ou adotado a meditação.

Quais são esses compromisso? Geralmente há uma lista, chamados de paramitas. Mas vamos ao básico para qualquer um começar hoje mesmo. Existe primeiro metta-karuna. Veja que estou usando a linguagem do cânone pali, isto é comum a todos, não adianta os theravadins, se aqui há algum quererem fugir de praticar paramis. Metta é amor incondicional, agape, é traduzido como amor benevolente porque é uma atitude e se torna ação, não é simplesmente um sentimento como costumam pensar no ocidente. E karuna é compaixão, mas é novamente uma atitude compassiva que se torna ação, diferente de pena, piedade, empatia, é bem mais além do que estas. Ok, então temos o terceiro ponto, generosidade, mas é uma generosidade de abrir mão, de colocar o outro primeiro, é uma generosidade desinteressada, inclusive de resultados, é traduzido normalmente como dar, mas é melhor dizer "se dar", "se doar". Porque dana é dar e se dar. Então temos esses três elementos do segundo ponto. Que é preciso concordar, é condicional. Para receber essa compreensão é preciso concordar com os termos.

Depois temos o compromisso de não matar, não roubar, não mentir, não ter relações sexuais indevidas nem se embriagar. São os cinco preceitos, que se vai treinado até levar ao máximo. Tem que concordar também. "Ah! gosto de beber, não acho que seja mal!", então tchau! É condicional, se você costuma se embriagar não deve vir aprender isso, não, muito mal. É discutível, pois existem exceções nessas regras, mas elas tem que ser aceitas e cumpridas, a exceção não pode se tornar a regra. Outras formas de budismo religioso ou budismo light estão muito em moda. Lixo. Budismo de salão. Melhor não se aproximar disso.

Então existe a maneira de ficar acordado, de dirigir a atenção, de ficar atento, vigilante de instante a instante e isso é todo um curso, isso é toda a terapia. O que você vai encontrar lá, o que vai ver e o que vai observar é tudo que deve ser tratado, e tudo isso descrito até aqui são apenas elementos auxiliares do tratamento, remédios. A terapia mesmo é feita consigo mesmo, a digestão e o mastigar, e com seu orientador, o ensinar, o ruminar e retroalimentar-se [feedback].

Então veja que definitivamente não religião nem uma filosofia, é uma terapia para os que se reconhecem doentes. 

Muito criticado por outros que pensam diferente e dizem que não é budismo é apenas uma psicologia ocidental adaptada pelos japoneses ao budismo. Aí eu pego eles num salto. Buda disse que a essência do ensinamento é o caminho óctuplo, é o que vou falar agora, Buda diz que enquanto houver o caminho óctuplo há o dharma. No mahayana se atrela também os paramitas e se coloca até como mais importante que o caminho óctuplo, pois bem, veja que é bem mais um caminho moral do que um caminho religioso ou uma psicologia apenas. Mas assim ficou conhecido e é uma boa divulgação, psicologia budista, porque é uma psicologia, científica, criada por Buda, desenvolvida por vários budas e professores, que tem se comprovado eficaz há milênios. Enquanto religião não se comprova nada, claro, é matéria de fé, o Nirvana, os doze elos, os devas, mundos, kalpas, tudo isso é matéria de crença, ou cada um algum dia vai comprovar ou não, mas apenas a si mesmo. Mas a psicologia, a terapia se comprova eficaz. Então veja de que se trata, não de provas nem crença, mas de eficácia. Essa é a compreensão daimoru.

Que é a essência do ensinamento, comprovada em sua eficácia, constitui uma terapia universal, independente de religião e filosofia, que pode ser utilizada por qualquer pessoa através dos meios eficazes para chegar ao resultado satisfatório esperado a saber, visão clara, libertação dos sofrimentos e das limitações da visão condicionada de realidade, e a prática voluntária e prazerosa do bem, a evitação do mal, visto como coisa temida e vergonhosa, e a purificação da mente em paralelo com o desenvolvimento de virtudes apreciáveis. 

Qualquer outra psicologia pode fazer uso desta para alcançar os mesmo fins, qualquer religião pode fazer uso desses procedimentos para que seus seguidores alcancem mais eficientemente estes fins, qualquer filosofia de vida pode se utilizar desses procedimentos desde que mantenha os compromissos éticos para que seus adeptos sejam pessoas melhores e mais benéficas. Essa é a compreensão daimoru. Que o dharma é uma terapia criada por uma pessoa e desenvolvida vivida e experimentada por várias outras que transmitiram a essência eficaz dessa terapia para o bem da humanidade e de todos os seres, para aguentarmos pelo menos esse período de vida nesse mundo conturbado, limitante onde estamos todos condenados à morte, velhice, doença e sofrimento e então superarmos o esquecimento e a inconsciência. Para a diminuição do sofrimento. como um presente, como medicos que dão remédios. Porque você não será cobrado, nem você receberá um certificado, uma formatura ou qualquer outro símbolo, mas um procedimento. Em resumo, em apresentação, está dito. Isto é a compreensão daimoru.

P. Eu ouvi dizer que daimoru é uma seita secreta do Japão ou uma escola esotérica, ou herética, isso procede?

R. Não. Daimoru é público, é muito praticado, é uma estética, é uma análise clínica no Japão, é uma psicoterapia, tanto pessoal como de aconselhamento, existe também a psicologia japonesa, que também tem um pé no budismo e a terapia morita [(japonesa também)] que é centrada na atenção consciente, e na observação das experiências internas ou mentais, ou seja, na atenção vigilante. São muitas variantes. O que acontece é que ninguém usa mais esse nome, daimoru, porque nem conhece, porque foi tomado por uma seita secreta, e agora está mais associado a ela, então ninguém quer usar esse nome, por não saber do que trata interiormente, se é uma heresias ou outra coisa. Outros relacionam aos remanescentes dos licchavis, um clã da antiga Índia, talvez mais proeminente onde é a região da Mongólia, de origem uralo-altaico, que espalhou pelo Tibet, e hoje está no norte de Bihar e de Terai, uma região do Nepal. O Mahaparinibbana Suttanta se refere a eles como os Kshatriyas, que reclamaram as relíquias do Buda. Como existem hoje escolas que adoram as relíquias, e como existem escolas chamadas de Budismo Primordial que consideram o uso de estátuas errado ou heresia, mas veneram ou adoram relíquias do Buda, o que é considerado por outros uma heresia... Enfim, há toda essa confusão, mas apenas confusão das pessoas, que pensam coisas sobres as outras ou deduzem sem realmente saberem, mas aposto que isso não acontece por aqui. [Riso generalizado]

P. Em que essa terapia participa em nossa ordem?

R. Uma pergunta de ordem técnica, muito bem. A atenção vigilante é uma das práticas fundamentais da ordem. O curso é para todos que querem aprofundar o estado de atenção, ou chegar, a samadi, a dhyana, ao satori... Isto é, um curso de aperfeiçoamento e aprofundamento nessa terapia. Não se chega a isso sem destruir os obstáculos. Serve para as pessoas praticarem por si mesmas num nível mais avançado até viverem acordados, alguns mesmo quando o corpo está dormindo, ou seja, está consciente de todas as suas experiências, de onde está, do que está acontecendo, do que está vivendo, do que está em sua mente. Por que? Para chegar ao significado, que é a proposta da escola, ler o librum naturae, compreender tudo como ensinamento. Então, nesse caso o curso é auxiliar para isso. Mas é, como sabem, obrigatório para os professores, pois precisam conhecer todas as técnicas e todas as ramificações para ensinar e para aplicar quando se faz necessário.

P. E como é que se faz isso, que se fica acordado ou em dhyana?

R. Isto é todo o curso de daimoru. Sati é facil, você aprende num instante, agora, mas dhyana é o fim de um processo. E não é bem assim... Ficar em dhyana o tempo inteiro já é um completamente desperto.

P. O senhor não poderia resumir o procedimento em passos?

R. Já fiz. Vou resumir mais ainda então. 1, acordar a atenção vigilante, consciente; 2, detectar e esmagar e digerir e destruir os obstáculos, abandonar todos, todo o tempo e 3, permanecer no estado acordado, generoso e claro gerado por essa ausência de obstáculos até que venha outro ou volte o mesmo e você repete o 2, o abandono. Mas há todo um aprendizado, método, muitos detalhes, muitos momentos, é um curso inteiro, longo. 

P. Está parecendo a escola da limpeza do espelho, é isso?...

R. Essa escola é parecida porque também deriva da nossa antiga escola Dhyana, é em outros termos a mesma escola ou filosofia da consciência-apenas, antes da divisão da escola da não mente, todas são derivadas de Dhyana, o zen, rinzai, o chan, a soto...

P. E aquelas pessoas que vêem isso como algo religioso, ou vindo de uma religião ou que são de outras religiões?

R. Veja, não é algo religioso. Seria o mesmo que recusar a fazer psicanálise, quando se precisa, porque Freud era um leitor de Nietzsche que dizem que era ateu (mas não era, ouviu?), ou porque a pessoa era cristão e Freud era judeu (também não era...). Estou com péssimas comparações, mas vamos lá. Seria o mesmo que não tomar um remédio que se precisa porque se sabe que seu inventor era ateu ou contra sua religião. Seria o mesmo que sendo um religioso a pessoa tivesse medo de estudar Platão quando está fazendo um curso de filosofia, porque Platão tinha relações homossexuais. Existem entendimentos necessários dentro de uma ciência e o daimoru, ou a psicologia budista, como queiram (porque Buda não parece ter proposto uma ciência, nem uma filosofia, nem uma religião, nem uma psicologia, mas de todas essas "psicologia" é o que me soa mais próximo à proposta de Buda), é uma matéria necessária na ciência que estudamos.

P. O senhor pratica elementos de várias religiões, já se mostrou aqui cristão e taoista algumas vezes. Isso não aumenta o risco de chamarem a nossa ordem de sincretismo ou de religiosa?

R. O que? O fato de eu adotar essas disciplinas ou da ordem estudar a psicologia budista?

P. Fale sobre as duas coisa então, por favor.

R. Veja, eu discordo do ponto de vista religioso, do uso da palavra religião aqui. Todo cristão por exemplo, o que estuda teologia, sabe que Yeshua HaMashiach não teve intensão de ensinar religião, é uma questão de comunicação de Deus e de salvação, não de religiosidade, certo? Da mesma forma penso eu, Buda não teve intensão de ensinar uma nova religião ou religiosidade: existem essas disciplinas, entre elas algumas psicologias, minha parte aqui é essa psicologia, não outra, é minha matéria. A visão aqui é filosófico-científica, a ordem se declara científica no sentido de sua metodologia, se seu objeto de estudo passa pela religião isso não a torna sincretismo, seria o mesmo que dizer que a antropologia é uma religião sincrética ou um sincretismo, certo?. Isso é uma desorganização no pensamento, a pessoa que pensar assim não está organizando seu pensamento ou desconhece a ordem e quem desconhece pode pensar milhares de coisas erradas sobre. E o que podemos fazer?

Quanto ao fato de eu adotar posições cristãs, taoista e budistas isso é um critério que só cabe a mim, eu não preciso me definir para o mundo, o mundo não precisa de minha definição. Quem sou eu? Ninguém precisa, na verdade, isso é o ego tentando se segurar em alguma coisa, tentando se auto afirmar, não precisamos disso, pelo contrário, precisamos colocá-lo no seu devido lugar ou na inexistência, que é do mundo da ilusão. A ordem utiliza elementos judaico-cristãos, budistas, herméticos-kabalistas, taoistas e yogues, mas num âmbito de ciência, se a pessoa escolhe uma ou outra religião desse tipo é assunto dela suas escolhas, é um efeito colateral desse estudo, que na verdade não tem esse objetivo. É o mesmo que a ineficácia de um curso de filosofia para muitos: eles não aprendem a filosofar por si mesmos, mas sim aderem a visão de algum filósofo e param nisso. Eu uso as ferramentas que trouxe e que ainda me são úteis e as ferramentas que a ordem me deu. Porque é para isso que estudamos essas coisas, como ferramentas para objetivos. Não é que eu tenha me posicionado como sendo de uma religião ou de outra, tecnicamente falando, não estou aqui para isso, embora vocês, alguns, saibam qual minha posição. Não se pode confundir as coisas, misturar o pensamento e voltar ao velho "eu sou isso ou aquilo". Isto seria voltar ao reducionismo e a auto-identificação egocêntrica de novo. Nós estudamos ciência meu rapaz, por isso nos escondemos (também por isso), porque nossa ciência às vezes estuda a religião dos outros e descobre seus erros fatais, e não estamos aqui para destruir as religiões dos outros, mas para ajudá-los a verem a verdade, não se pode perder de vista esse objetivo.

P. Mas para ver a verdade não é preciso saber o que é mentira?

R. Isso não tem lógica. É um argumento falso. Muito usado eu compreendo. Ai o maligno vai semear mentiras uma depois da outra e você nunca verá a verdade distraído em desmascarar mentiras. Veja, se você demonstrar que algo é mentira não quer dizer que encontrou a verdade sobre aquilo, quer dizer apenas que aquela era uma mentira. Digamos, Deus, se você demonstrar que uma religião está mentindo sobre Deus e comprovar isso, você automaticamente descobre ou revela o que é na verdade Deus? Não. Então essa postura é errada. 

E qual é a certa? Descobrir a verdade e demonstrar a verdade: Quando você comprova e demonstra a verdade sobre uma coisa a mentira sobre ela cai. Todas as mentiras caem automaticamente.  Esse é o caminho. Não adianta sair criticando as religiões se você não consegue demonstrar a verdade, está apenas sendo um arrogante egoísta tão ignorante quanto os iludidos pela mentira, pois você também não sabe a verdade. É hipócrita. A razão de nossa ordem é a verdade, descobrir a verdade é o caminho. "Conhecei a verdade e a verdade vos libertará". Simples, prático, direto, no alvo.

sábado, 20 de outubro de 2018

Uma Seção de Perguntas - Parte 4

De Uma sessão de perguntas feitas pelos estudantes a Ryokan Hiroshi

Alguém perguntou por escrito qual a diferença entre o zen tradicional e o zen que eu pratico. Eu não respondi na hora porque isto entra no tema de hoje e falei que assistisse hoje e se ainda restasse dúvida conversaremos mais. Porque trataremos sobre pontos práticos.

O tema que quero abordar hoje passa levemente pela história do zen, uma parte dela, e pela questão ou abordagem terapêutica moderna do zen. Primeira coisa que não existe essa história de zen tradicional. Existem escolas chamadas zen derivadas da escola que surgiu a partir do ensino do missionário indiano Bodhidharma, sim que não era chinês, talvez sua origem seja desconhecida, mas se diz que ele veio da Índia, não? Não explica sua aparência que é normalmente figurado como um homem enorme, alto e gordo. Mas há um detalhe que os desenhos não mostram, só as descrições. Ele era chamado o bárbaro loiro, tinha olhos azuis, cabelos longos e era louro.

Bem, em todo esse aspecto enigmático, some a personalidade enigmática, mais o ensinamento ou falas enigmáticas, isso tudo é que gerou a semente da escola zen. Estou falando da história real, não da lendária ou simbólica. Ele é o patriarca da escola. Mas ele não fundou o zen, nem mesmo o chan, que é da onde vem o zen, ele ensinou uma terapia para os monges, que serve para qualquer pessoa, mas é a que os monges em geral precisam porque suas mentes ficam doentes de tanto estudar e decorar sutras, de tanto meditar, de tanto repetir atividades, sua mente fica realmente doente, não purificada (e agora vocês entendem porque não dou muitas palestras em monastérios, vocês percebem?).

[Risos]

Se você pegar qualquer monge, para não generalizar vamos dizer a grande maioria, e lançar na vida cotidiana do mundo, ele estará logo a mesma coisa ou algo pior do que quando entrou para o monastério (veja que não falo de teoria ou conhecimento, mas de prática e resultado). Ele logo estará impaciente, irritadiço, ansioso, triste, rabugento, facilmente enganado às vezes (porque atrofia também a intuição às vezes), com mais dúvidas do que sabedoria, talvez com mais dúvidas que antes. Estou exagerando? Bem, eu li relatos de monges que votaram e é parecido com isso, tem muito mais coisa, às vezes nem isso, mas tem outras coisas... Porque o monge se isolou das situações de estresse normais e trocou por outras. O chan surgiu assim. Um homem descobriu isso, nele mesmo e criou uma forma de resolver o problema, isso é o ensinamento de Bodhidharama, para mim.

Agora vou dizer como, de forma bem resumida porque vocês podem fazer isso de forma bem mais eficiente e com mais tempo numa pesquisa na internet sobre a história de Bodhidharma e das escolas chan, podem achar livros inteiros sobre isso até. Ele viu o que a maioria de vocês não está vendo, ele passou por isso e viu em outros. O que é?

Que existem milhares de monges e praticantes no mundo, muitos são dedicados, alguns são extremamente dedicados, mas o que eles alcançaram? Quantos atingiram a iluminação? Quantos ao menos experimentaram Nirvana? Quantos se libertaram das impurezas?... Olhe, vamos ser logo diretos: quantos se libertaram das primeiras impurezas mais fáceis e atingiram dhyana alguma vez? Assim mesmo por baixo, vamos cortar por baixo. Você sabia que existem monges que praticam corretamente desde a infância e continuam com dúvidas, supersticiosos, sem atingir um jhanazinho sequer? E você aí se acha tão especial que vai sentar um dia na semana por uma hora e vai atingir o estado de buda?

Amigos! Que prisão! Que escravidão! Era assim que Bodhidharma se via (vou dizer que se via, não vou dizer que estava, mas era como se via, sem realização). Bodhidharma vendo isso se tornou  exagerado, praticou severamente, por horas e horas, dias e dias sentados. E o sono vinha...

Entendam, ele praticava corretamente ou não? 

Pronto. Segundo ponto. 

Segundo que não existe isso de tradição zen. Claro, se não existe zen tradicional, não existe zen-tradição. Eu não sou um mestre zen, se você encontrar um mestre zen mate-o [(parafraseou a famosa frase zen "se você encontrar um buda mate-o"...)]. Foi isso que foi deixado. Uma escola surgiu a partir do ensinamento de Bodhidharma. Mas essa escola já surgiu praticamente dividida em duas, ou três tendências. 

Então com o tempo foram acrescentados elementos de outras escolas como rituais e isso foi se modificando ainda, acrescentando umas coisas, tirando outras. O que sobrou do original numa visão histórica? O que se perdeu? Existem histórias tradicionais misturadas com lendas, mas historicamente quais são as garantias? Mas o que importa realmente é isso [(o que restou e o que se perdeu)] porque é isso que dirá a efetividade original. Muitos vão dizer que esse ensinamento foge ao original do Buda ou até mesmo de Bodhidharma, mas a nossa medida é a efetividade. Por isso a escola se separa do aspecto religião e religa ao aspecto disciplina, vida, e, então, terapia. 

Nós então preferimos ficar apenas com o original efetivo. Nós olhamos inversamente à visão de muitas escolas. Elas olham "o ensinamento é isso", outra diz, "não, de forma alguma, o ensinamentos é isso". No Japão, uns pontuam que são os sutras, outros que é certo sutra, outro que é a tradição desde o Buda, outras que é certa tradição ou reforma de algum mestre, outros que é o "ide" do Buda. Embora nós sejamos dessa última linha de pensamento, nós olhamos ao contrário: olhamos para todas as escolas e dizemos "o que trás o resultado proposto por Buda?". O que está de acordo com o dharma e seus resultados? E primeiramente tenho que dizer que não é a religiosidade.

É uma visão difícil de ser aceita e difícil de ser explicada e eu não vou explicar. Mas se você pensar que o "ide" de Buda é suficiente como nós, está tudo explicado. Consequência: você tem que estudar os sutras e suttas e ouvir os que os ensinam, você tem que considerar os ensinamentos de tradições, você tem que ter praticado por muitos anos para ser experiente, você tem que conhecer o que os restauradores dizem que é o mais puro e original ensinamento que saiu da boca do Buda e ver se isso procede historicamente falando, e, você tem que ponderar tudo e fazer o que fazemos: conhecer os resultados e a efetividade da prática. Então você estará pronto para atender o "ide" do Buda. Foi isso que Bodhidharma fez. Essa análise é o que Buda ensinou a fazer, ele não ensinou a você pesquisar escolas e escolher uma. Ele disse para ponderar e e testar seus ensinamentos. Então tudo que se faz hoje conhecendo visões de escolas, está tudo errado. Está se perdendo.

Então veja que nossa visão é a única que faz o que todas as outras visões fazem sem excluir nenhuma, é a mais completa, a que abarca todas as possibilidades sem perder a noção do efeito.
Agora, nossa escola é uma escola patriarcal, ela tem uma série de preservadores e "restauradores". E alguns desses centraram mais enfaticamente no ensinamento mais puro para trazer resultado, são como especialistas, são terapeutas. Isso atraiu pessoas de todas as religiões, primeiro no Japão e depois em países do continente [(Ásia)] e Estados Unidos e agora começando a se espalhar pelo mundo. Pessoas vendo os efeitos dessas práticas analisando seus benefícios e as suas próprias necessidades vieram aprender. Então muitos saíram formados por duas escolas no Japão inicialmente como professores zen. Eles eram de outras escolas budistas, de outras religiões, padres e pastores cristãos, psicólogos, professores de ordens esotéricas, estudiosos, taoistas pesquisadores, historiadores, médicos, psicanalistas. 

Então isso começou a se espalhar. Cursos de formação, novas escolas. As pessoas continuavam em suas religiões ou ordens e suas profissões ou psicologias e utilizavam essa "técnica", quando na verdade incorporavam essa prática e moral em suas vidas. Monges theravada inauguraram wat's, locais desse tipo de introdução centrado em resultados, com retiros longos de três meses, quatro meses, um ano, de formação. Outras escolas do zen fizeram o mesmo... Antes de mais nada é uma reforma de nós mesmos, uma reforma moral (principalmente para aqueles que tinham dificuldade de seguir a moral do budismo ou de suas religiões e agora conseguem) e uma reforma no modo de ver. O primeiro passo do caminho óctuplo... É indispensável.

Essa é a nossa visão.

quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Gyoji, a prática incessante


Seshin de Rohatsu de 1986

por Ryotan Tokuda

"Os rostos originais dos Buddhas e Patriarcas não podem ser vistos. O rosto original, ossos e medula dos Buddhas e Patriarcas também, como também não parecem ir ou vir. Devemos examinar a prática incessante de um só dia. Portanto, cada dia é precioso. Se vivermos em vão durante 1.000 anos, acabamos nos aborrecendo com os meses e os anos. Isto é um triste desperdício de tempo. Mesmo 1.000 anos de escravidão dos sentidos são redimidos por um só dia de prática incessante. Uma vida corporal de um só dia é a possessão mais valiosa de todas.

"Portanto, se vivermos somente um dia e possuirmos a função de todos os Buddhas, um dia é mais útil que reencarnar durante incontáveis vidas. Por isto, se o problema da vida e morte não foi decisivamente resolvido, não devemos desperdiçar um só dia sequer. Um só dia é um grande tesouro a ser altamente cotado, é melhor, muito melhor que um pedaço de jade ou as jóias de um dragão. Sábios do passado contavam um só dia mais que seus próprios corpos e mentes. Devemos refletir calmamente sobre isto. E descobrimos algo de mais precioso que a jóia que concede todos os desejos ou riquezas. Mesmo um só dia em uma vida de cem anos não pode ser devolvido ou tomado de volta. Existirá algo que possamos fazer, alguma ação, algum método para que o recuperemos? Tal não existe.

"Se desperdiçamos tempo, somos enredados como a pele enreda o corpo. Santos e sábios davam mais valor a cada dia e a cada mês que às suas próprias vidas e ao seu país. Se o tempo for desperdiçado, seremos cativados pelo status e pela fortuna do mundo impermanente. Se evitarmos, viveremos no Caminho. Se tivermos determinação, não passaremos um só dia inutilmente. Pratiquemos e proclamemos o Caminho! Portanto, tenha em mente que os Buddhas e Patriarcas não gastam um dia sequer em prática inútil. Durante os dias tranqüilos de primavera, sentemos perto de uma janela cheia de luz e reflitamos sobre tal. Em noites de outono, de chuva fina, fiquemos em um choupana simples de floresta e nos concentremos na prática. Sentimos falta de tais tesouros porque não temos a prática. Como pode a virtude da prática ser tempo roubado? Nada nos é roubado. A virtude de muitos kalpas é roubada? O que causa o conflito entre o tempo e nós mesmos? O ressentimento, porque a nossa prática é insuficiente.

"Não devemos nos permitir sermos condescendentes demais conosco mesmos. Isto causa auto-ressentimento. Os Buddhas e Patriarcas também têm ligações de gratidão e de amor. Eles, contudo, as abandonam. Eles têm muitos relacionamentos, mas os abandonam. Mesmo que lamentemos, não podemos nos aborrecer com nossas relações com os outros. Se não cortarmos os liames de gratidão e de amor, os laços de gratidão e de amor nos cortarão fora. Se temos apegos com a gratidão e com o amor, devemos assim proceder. Ter apegos nos mostra que devemos cortar tais coisas."

Esta é a continuação do capítulo do Sobogenzo , capítulo Gyoji, a prática incessante. Aqui, vamos passando rápido, ele está falando sobre a importância da prática. Como se estivesse dizendo: falar sobre Zen, depois de algumas leituras, uma pessoa inteligente consegue falar, por isto existem vários tipos de Zen. O "Zen de salão" para os ocidentais. Às vezes leram alguns livros sobre o assunto e gostaram muito. Parece piada, né? Koans, etc., estas coisas são impressionantes! Fica-se impressionado e narra-se estas coisas num salão qualquer de sociedade. Com as damas, tomando café, tomando chá, batendo papo, e aí falando sobre Zen. "Isto é Zen!" Parece muito bonito, mas o fato é que nada tem a ver com ele. Por isto, às vezes precisamos em vez de boca, falar com o corpo. A boca pode mentir. Mas o que corpo está fazendo é que esclarece as coisas completamente, ao invés da fala.

Então, pratiquemos quietos, mas sem cessar. O praticante Zen falante, principalmente durante o sesshin, guarda o silêncio com aquela cara... Mas se começa a falar muito, então prejudica não somente a si mas aos outros também. Depois do seshin pode-se falar, ao terminar o retiro. Assim é o Mosteiro Zen e a prática com os colegas. Depois, aqui no texto, fala-se sobre o tempo, sobre a impermanência; nós os sentimos muito pouco em muito poucas ocasiões. Quando há jovens, eles não entendem o sofrimento dos mais velhos. Quando se tem saúde, não se entende o sofrimento dos doentes. Quando tem-se força, saúde e beleza, tem-se orgulho e vaidade e não se entende o sentimento de outras pessoas. Mas estas coisas todas não dependem de si mesmo. Apenas acontecem, mas isto não é algo que dure para sempre. Logo depois... até ontem era um rapaz moço, mas hoje já está de barba branca. Isto nunca mais se pode ter de volta. Todos sabem disso. Mas sentir na alma, poucos podem.

Mestre Dogen coloca os quatro tipos de cavalos: 1) O que vendo a sombra do chicote, já começa a cavalgar; 2) O que o chicote tem que tocar a pele; 3) O outro cavalo, o chicote tem que cortar até a carne; 4) O último, o chicote tem que cortar a carne e chegar até o osso, senão, ele não sente. Isto significa que quando a pessoa encontra a morte num jornal todos os dias, é um problema dos outros. Mas se encontrar a morte de alguém mais próximo, lamenta-se: "Ele era jovem, não deveria ainda ter morrido." Depois, quando é um parente, pessoas mais íntimas, sente-se, sente-se muito e se chora. Mas depois de algum tempo, se esquece novamente. Agora , ele é aquele cavalo que só sente quando o chicote corta a carne ou o osso quando chega o seu momento. Tem que morrer amanhã. Não adianta. E assim temos os quatro tipos de cavalos.

Neste caso, o Buddha Gautama era uma pessoa muito sensível. Apesar de ser um príncipe, estava passando na cidade e vendo tudo. O Rei, seu pai, preocupado, lhe falou: "Vá passear para se divertir." E passeando, ele encontrou um velho. "Quem é este?" Um camarada respondeu: "É um velho!" Com as costas curvadas, não conseguia andar, era um velho. "O que é velho?" "Ah, todo mundo fica velho com a idade, ninguém disto escapa." "E eu também vou ficar assim?" "Pois é claro que sim! Aqueles que são nascidos, envelhecem." "Ahhh!" Sentido, ele voltou ao palácio. No dia seguinte, passeando por um outro lado, se deparou com um doente sendo carregado, suportando dores, e perguntou novamente: "O que vem a ser?". "Isto é um doente". " O que é um doente?". "Enquanto temos físico, ficamos do-entes". "Então eu também vou ficar assim?". "É claro! Como todo mundo". Isto é muito simbólico, mas ele, perfeito, com saúde, jovem, viu a doença e o envelhecimento dentro de sua juventude. Encontrando com mortos sendo conduzidos ao cemitério: "O que é isto?" "Isto é a morte." "O que é a morte?". "O que é a morte? Todo mundo morre, nasce e morre." . "Eu também?". "Claro, todo mundo morre". E a quarta vez, saindo do castelo, encontrou-se com um monge, andando tranqüilamente. "Quem é este?". "Este é um monge". "Ah, talvez este seja o meu caminho". E assim o jovem príncipe estava traçando a direção de sua vida. Abandonar, renunciar. Até um dia sair do castelo. Este relacionamento amoroso, pessoal mais forte, pai e mãe, esposa, filho,etc., é uma coisa bonita, mas ao mesmo tempo agarra e amarra. Existem leigos que vivem sozinhos, solteiros.

Hoje em dia monges também podem casar. Mas antigamente, realmente se dedicando ao Caminho, todos pelo menos uma vez cortavam todas as relações. Este tipo de coisa é muito difícil. Existem koans para isto: " o dedinho mindinho". O dedinho está amarrado com uma linha de costura, uma linha vermelha. Porque é que não se pode cortar a linha? O koan é este. "Porque não se pode cortar uma linha vermelha?" Puxando um pouco se pode romper esta linha. Aqui existe um relacionamento com as pessoas. Cortar requer força. Mas havendo sentimento, desligar-se é difícil. É realmente difícil. Mas o mundo é assim. Na vida de monges, se renuncia. Abandona-se. Neste momento é a própria força ou a força dos outros. Um fio vermelho significa a relação com a família, a mulher; é realmente difícil cortar. Mas o tempo que é tão precioso é uma coisa do mundo, mundana... Por isto, uma vez despertado surgirá esta necessidade. E quando sentir, aí surgirá o impulso de tudo largar. O trabalho, suas tarefas e funções; mas a barreira é sempre este relacionamento mais íntimo... Esta questão é mais para monges... Hoje em dia, os monges casam, mas eu digo que o casamento de um monge não é um casamento qualquer. Claro, todo mundo é assim, principalmente monges, não é uma questão de casar por acaso. Tendo-se uma certa idade, aí se deseja casar. Por que casar? Porque ficar sozinho é muito chato. Fica-se solitário. Ou talvez para alguns seja uma questão de confiança dada à sociedade. Isto é a resposta, o casamento. Mas não, aqui se trata de um amor mais profundo. Depois disto, existe alguém mais além, e isto não é por acaso. Aqui são poucos os monges, mas despertando, assustam-se com alguma coisa mais profunda, talvez a impermanência. Quando se está realmente com este sentimento, uma energia enorme leva-nos em frente.


De certa maneira, as pessoas se tornam enfim escravas dos cinco sentidos. Comida boa, escutar música, ver coisas bonitas, ler livros preciosos, arte, teatro. Mas o que acontece é que o tempo passa tão rápido que assusta. Se morrer aos setenta, oitenta anos, até que tudo bem, mas às vezes morremos tão jovens, até os bebês podem morrer. Neste momento nós realmente reagimos: "O que é isto?". O monge Ikkyu, muito cínico, andava com um crânio na ponta do bastão de peregrinação durante o Ano Novo. O ano Novo no Japão é como o Natal aqui. Aqui todo mundo fala "Feliz Natal"; ou então, "Feliz Ano Novo". Mas porque razão "feliz"? Completando o ano, a morte está chegando mais perto. "Ah, não fale isto sobre o Ano Novo! Ano Novo é uma coisa boa, você está falando em morte? Por favor, fale uma coisa alegre, mais agradável." Então ele disse: "Primeiro morre o avô, em seguida morre o pai e em terceiro lugar morre o filho." "Ah, morre todo mundo?" . "Sim, mas morrendo nesta ordem, avô, pai e filho, está muito bom. Se o filho morrer primeiro do que o pai ou o avô, isto seria uma tristeza". Por isto, os monges para sentirem a impermanência, faziam certos tipos de meditações no cemitério, vendo cadáveres; quando vinham desejos sexuais, iam lá e olhavam. Viam os corpos e os cadáveres.

Na Índia jogavam-se os cadáveres no cemitério, não enterravam, não faziam cremação. Aquela moça bonita morreu, ela ainda pode despertar desejo, mas logo depois, um dia, quando está quente, não leva nem 24 horas, começa a correr líquido, um sangue meio aguado, e começa a inchar e a mudar a cor, vermelho meio roxo, manchas; se morreu acidentalmente com água ou com fogo é mais terrível. Como eu sou monge, já encontrei vários tipos de mortes. Fui várias vezes ao Instituto Médico Legal. É uma coisa terrível. Os corpos ficam nas gavetas, na geladeira. Totalmente nus. E geralmente todo mundo está cortado de cima abaixo e mal costurado. Todos iremos para lá. Não importa se ricos ou pobres. Nem se é inteligente, não importa, tem que passar por lá, tirar todo a roupa e somente uma etiqueta no peito. Este corpo cheira, cheira, e passa lá um dia, três dias, uma semana... com mau cheiro. Comendo depois peixe assado, grelhado, a carne não entra mais na boca. É o mesmo cheiro, nós nos lembramos. A carne, coisas inchando e começando a abrir, com bichos; começam a vir moscas, aparece o osso, um cachorro vem e leva um pedaço. Daqui a pouco vem o vento e leva tudo. Neste momento, com o que você está apegado? Este é o outro lado da realidade. Aí vem aquele susto, a questão: "O que é a vida e o que é a morte?". "O que é o amor?". "O que é a eternidade?". "O que é o absoluto?". Estes tipos de perguntas, quando uma vez surgem, não passam mais. Se não resolvemos este sofrimento espiritual, não encontramos a paz. Mas raramente este tipo de questionamento acontece, porque neste mundo há tanta coisa bonita, tanta coisa boa, tanta coisa divertida.

Um viajante encontrou com bichos, uma onça, um tigre, leões, panteras; aí fugiu para dentro de um poço que ele por acaso descobriu. E se segurou ali dentro em um cipó; quando olhou para baixo, havia um outro bicho, uma serpente venenosa, esperando de boca aberta. Desesperado, segurava apenas a corda. E aí apareceram dois ratos, um branco e um preto, e começaram a comer o cipó. Quando acabaram de roer, ele caiu. E lá no fundo do poço encontrou uma flor aberta, que deixava cair néctar; aí ele recebeu o mel com a língua: "Ah, que doce!" E naquele momento o viajante esqueceu todos os perigos. O que é isto? Estes quatro bichos são os pontos cardeais, são os quatro sofrimentos: 1) a vida é sofrimento, 2) o envelhecimento é sofrimento, 3) a doença é um sofrimento, 4) e a morte é um sofrimento. E o cipó, ao qual ele estava agarrado, é o tempo; o dia é o rato branco e a noite é rato negro. Dia e noite. E os outros animais... A flor no poço o que é? A flor é a vida que dá as sensações para satisfazer os desejos: comida, música, estes tipos de desejos de bens materiais, sexo, etc, etc. Os jovens estão procurando alguma coisa, mas não sabem o que. Não sabem onde encontrar. Sexo, suspense. Com estas sensações instantâneas, estão esquecendo certas coisas e, inconscientemente, estão querendo fechar os olhos para outras. Então, cada vez mais estas outras coisas são mais fortes. Com isto eles querem esquecer a realidade. Mas quem despertou não pode esquecer. Naturalmente, sozinho ele começa a se afastar das pessoas e começa a meditar sozinho. Porque dentro dele aconteceu alguma coisa errada. Alguma coisa errada. Com o que realmente se pode contar? Começa a pensar: sobre seu pai, dinheiro, casa, carro, esposa, filho. Para certas pessoas a resposta é positiva: "eu tenho dinheiro, eu tenho casa, eu tenho pai." Mas para alguém mais esclarecido, realmente com que se pode contar? Nem a nós mesmos podemos conduzir livremente. Tudo despende uma força enorme. A isto se chama impermanência.

Nós batemos o han, o han é um tambor de madeira, não sei se vocês notaram, primeiro bate-se sete vezes com o mesmo distanciamento entre cada batida, depois carreira rápida, depois bate-se cinco vezes, depois carreira, depois três vezes mais. E assim o nosso tempo é cada vez menor: 7,5,3,1,0. Zero. Zero! Quando é zero é a hora do adeus. Aí se vai embora. Falando desta maneira, as pessoas podem pensar: "O Budismo é tão pessimista! Por isso que eu não gosto. Tem cheiro de morte". Mas não é. Para realmente vivermos neste mundo, pelo menos uma vez ou outra, ou em alguma ocasião, é bom pensar um pouco. Pensamos que temos muito tempo pela frente. Não! Metade já se foi, passou. 2/3 já se passaram. Dentro da história japonesa, dentro da literatura, há uma pala-vra, go-avai, que significa: as coisas lamentáveis deste mundo. Sentindo a impermanência, mais lamentável ainda. É um sentimento. Mas esta filosofia quando chega a ser mais profunda, através dos monges Zen, fica ainda mais acentuada. Como eu expressei, vendo as coisas que vi no limite deste mundo, até onde se pode gozar?


Ainda temos um pouco de tempo. Têm perguntas, sobre este assunto?... É por isto, dentro da história do Zen, que os monges abandonam suas famílias. Isto é perigoso. Este pensamento e esta filosofia, são muito perigosas hoje em dia, para os jovens principalmente, que tão facilmente se separam. Antigamente, o Sexto Patriarca cuidava de sua mãe com muito amor e ainda assim abandonou tudo. Difícil de abandonar e abandonou. É isto. Não é como hoje, que as pessoas estão tão pouco ligadas, tão irresponsáveis. Não é neste senti-do. Por isto, se for uma pessoa qualquer, então não deve brincar, "ah, eu agora sou monge!". "E agora novamente vou voltar a ser leigo!". "Ah, não deu certo, então eu sou monge novamente". É desta forma que as pessoas estão brincando, quando na verdade isto é uma coisa muito séria. Por isto até agora, os grandes mestres são realmente heróis. Cortaram aquilo que não podia ser cortado. Por isto naturalmente, o treinamento deles dentro do mosteiro é diferente dos demais monges. Porque cobram de si mesmos e dos outros também as situações e as mudanças bruscas. Tem que ser sério mesmo. É assim a teoria que diz que nós devemos dedicar 99% ao treinamento; agora cortando, depois renunciando ao mundo. Amor todo mundo tem, mas este amor é limitado, apenas à sua esposa, apenas ao seu próprio filho; se o filho brigar com o filho do vizinho, em seguida começa a briga dos pais. Falam muito também, especialmente os militares, em amor à pátria, e o que é o amor à pátria? Amar a sua pátria... então começa a guerra, e gritando no campo de batalha, os filhos se vão. Vejam o resultado da Argentina: a guerra das Malvinas. É o amor limitado a si mesmo ou aos vizinhos, pátrias, estados; mas o verdadeiro amor é muito mais, uma coisa universal.

Os monges, cortando estes amores particulares, penetram no amor universal ou fraternidade, uma coisa maior, e vivem neste mundo mais amplo. Esta é a missão dos monges. Não é apenas fugir da responsabilidade deste mundo. Vem agora uma outra espécie de responsabilidade de não acabar com este treinamento, a prática incessante de todos os Buddhas e Patriarcas que chegou até nós. Neste caso, isto se chama grande compaixão, já não é mais amor. É grande compaixão. É em cima disto que monges vivem. Se os monges não a tiverem, apenas quiserem ganhar uma iluminação particular, sabedoria, não terão verdadeira compaixão.

No fundo, no fundo, há que se ter esta grande compaixão. Neste caso, ela não tem limites de espaço, ocidente ou oriente, sul ou norte, um país ou outro país. Não tem esta diferença de país, distância, de espaço e não tem limite de tempo, passado, presente e futuro. Aquele amor de Jesus Cristo, até agora vive. Quantas pessoas foram salvas com isto? Buddha, Confúcio, Sócrates, estas grandes figuras da humanidade, apareceram, sacrificando as suas vidas particulares e se ofereceram a todos os seres e, com isto, estão numa outra dimensão, num outro nível de pensamento, ajudando fora das coisas do mundo, em outro mundo sagrado. Este é o mundo do Dharma, como nós o chamamos; neste caso, a grande compaixão sem limites cobre tudo, todos os seres humanos, todos os seres viventes, inclusive as plantas. Esta é a filosofia fundamental budista, por isto este trabalho ecológico, com o meio ambiente, voltado para a natureza, no fundo está baseado nesta filosofia; não somente seres humanos, mas o amor, a compaixão, alcança até os bichinhos, até as plantas. Não matar, mas dar a vida pelas coisas, até as coisas materiais, insensíveis, até os bens materiais. Até isto: dar a vida até por estes objetos.

Se maltratar, isto quebra, precisa então consertar. Mas se tratar bem, este relógio funciona por anos e anos sem quebrar. Então está se dando a vida, para o gravador, para o cobertor, colchões, esteiras, tapetes, etc, tudo. Não matar, significa dar a vida para as coisas. Então, deste jeito, mudam-se todos os conceitos e muito mais além ainda, mais além. Então, este amor sem limites cobre tudo, passado, presente e futuro e o espaço também, e ainda é incansável. Incansável, significa que estamos querendo ajudar e salvar, mas não querem aceitar, porque estão bêbados e estão adormecidos. Queremos ajudar, mas não aceitam, porque estão apegados às coisas do mundo, não escutam, não reconhecem. Não desanime, não pare, vá, vá, mesmo com muito sacrifício e muitas dores, mas não canse, vá, constantemente. As pessoas não têm natureza de Buda? Como salvar este tipo de gente? Não quero abandonar ninguém. Todo mundo tem que ser salvo. É a filosofia do Bodhisattva. Esta filosofia do Bodhisattva é incansável. Corajosa. A qualquer tipo de dificuldade pode-se fazer frente. Sozinho. Esta é a dignidade dos monges. Se não a tiver, é melhor voltar para casa. Morar com sua família, lar, aquela comida quentinha, música, aquele sorriso bonito, é bom. Depois daquela grande negação, vem esta grande aceitação, a constatação de que o mundo é todo maravilhoso. Tudo é maravilhoso. Depois de passar por isto, nós sentimos claramente. Senão, com pouco treinamento, brigando sempre, vamos nos separar. Deixemos de brincar com estas coisas agora. O Shobogenzo, a prática incessante, é para isto, não é para saber de nada mais. Zen, aqueles koans interessantes, isto não é Zen de salão, tomando chá, não, é algo que parece estar abrindo a sua barriga, saindo dos intestinos e andando, arrastando-se a dor. Senão é melhor ficar parado e viver neste mundo. Tomar banho, ir para o cinema.

Temos um pouco mais de tempo. Têm perguntas? Não sei se entenderam, perguntem para não haver mal entendidos nesta parte de renúncia ao mundo. Por favor, as senhoras aqui ficam muito preocupadas, não é isto. O Budismo Mahayana é muito amplo com a compreensão de suas famílias. Podem seguir o Caminho, não necessariamente sozinhos. O caminho é muito amplo, muito amplo, pode-se ir com 2, com 3, com um grupo, todos juntos. Mas algumas pessoas, realmente poucas, levaram aquele susto... estes homens não tem jeito, despertam. Se não houver perguntas sobre este assunto muito sério... Desculpe, mas temos que encarar esta seriedade, porque está no texto.

Pergunta: Que diferença faz saber destas coisas, se na hora de vivê-las dói para todo mundo?

Resposta: Este treinamento Zen é "para estes poucos" que levam a sério. Zen é uma coisa nova aqui, mas aquele que o procura têm problemas, problemas psicológicos de certa maneira, é um doente, apesar de ter saúde mental, física e intelectual, mas mesmo assim é um doente. Doente de vida verdadeira. Querem viver realmente. Assim, com a necessidade, começam a procurar várias coisas e por acaso alguns chegam até o Zen. Por isto, dentro do Zen, há esta loucura, essa dureza, porque o treinamento dói, é duro. Mas quem procura este Caminho, está escrito no texto, os seus problemas doem mais ainda. Então estas dores não se comparam. Por isto aguenta-se e vai-se muito mais além. Para frente. Este treinamento é difícil. Mas realmente, a pessoa sabe o valor. As coisas verdadeiras não são ganhas com tanta facilidade . São difíceis. Por isto o treinamento é simbolizado por pérolas que estão no queixo do dragão. Se a pessoa precisa ganhar estas pérolas, tem que lutar com este dragão. São Jorge, contra este dragão ou demônio, é você mesmo. Se conseguir ganhar do dragão, se transforma em um deus, um deus e guardião ao mesmo tempo. Este corpo pode fazer muita coisa. Bobagens, besteiras com o karma, mas ao mesmo tempo com este corpo nós podemos fazer muitos atos bons. Isto é transformação. Encontrando-nos com o Caminho, com este ensinamento, começamos a mudar. As células, carnes, músculos, os ossos, se transformam no corpo de Buddha. Nós temos o corpo do Buddha cósmico, mas ainda é muito simples, precisa se transformar realmente, manifestar a beleza de Buddha. Ainda fazemos muita besteira. Mas o treinamento é um passo depois do outro.

Pergunta: O que significa que nós termos que lutar contra o dragão?

Resposta: Esta luta é porque nós temos ignorâncias incontáveis. Isto desde muito tempo atrás, e por isto estas raízes são muito fortes. Tem que cortar . Esta é a luta. Agora, o Budismo Mahayana, o Zen, vai muito mais além: tenta sem cortar estas ignorâncias, vivendo neste mundo com família, com mulheres, com filhos, com pai e mãe realizar a iluminação. Esta é que é a libertação verdadeira. O Zen é assim. Dentro do Shingon esotérico é assim. Aceitação. Se uma pessoa resolveu tudo e se iluminou, vem aquela exclamação do Buda: "Que maravilhoso! Todas as coisas são douradas! Todos os seres têm a natureza de Buddha. Céu, terra, todos os seres viventes realizaram a iluminação comigo. Quem tem ouvido, escuta o meu sermão!" Como o orvalho do céu: quem toma uma vez deste orvalho, nunca mais morrerá. Quem está sofrendo com esta mortalidade, esta impermanência, quem encontra este ensinamento, é como tomar estas gotas do céu. Este é o ensinamento do Buddha. Aí nunca se perderá a vida. Todo mundo tem medo de doença, envelhecimento e morte. Então, para quem pode ter esta pureza, esta tranqüilidade absoluta, esta é a melhor coisa que existe. Não são somente os bens materiais que contam, mas é dar segurança e vida, este é o trabalho dos monges. Com esta missão, o egoísmo de seguir o Caminho sozinho deve ser contrabalançado. Por isto, este é um trabalho de herói. Como um herói, lutando contra milhões de inimigos, pode-se mais ganhar para si mesmo. É um trabalho muito difícil. É isto.

https://www.sotozencuritiba.org/Gyoji.php

quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Uma Sessão de Perguntas - parte 3


Uma sessão de perguntas feitas pelos estudantes a Ryokan Hiroshi



3. O senhor poderia falar mais sobre sua saída do zen e os motivos e que lição trás isso para nós? Pois parece algo muito semelhante á experiência de muitos que chegaram aqui desiludidos com o que estavam seguindo, e não como outros que não deixaram suas doutrinas de antes.

Não, porque eu não deixei o zen e não, ainda, porque eu nunca segui o zen...

É incrível como, de tantas formas de budismo e tantas doutrinas que estudei, o que fascine mais as pessoas seja sempre o zen. Eu não posso falar sobre isso porque seria uma má propaganda, seria um falar mal. Eu já falei outras vezes que o zen é que deixou o zen e isto pode soar mal para algumas pessoas, ou que estou falando mal do zen. [Falou um dito chinês ou japonês, que não podemos entender ao todo, aparentemente sobre surrar um cão de guarda, algo que talvez deva equivaler ao nosso "cuspir no prato que comeu".]

O que eu posso dizer é que o zen não serviu para mim senão como uma ponte, por um tempo. Eu pensava que era meu caminho, mas estava atravessando uma ponte que levou a muitos caminhos para escolher. E eu escolhi não seguir no zen oficial porque muitas coisas não se ajustaram às minhas necessidades na época. Isto é tudo. Boas ou más escolhas, aqui estou.

No zen que eu estive há roupas, ritos, obrigações, recitações, devoções, hierarquia. Na outra escola que segui que também é zen (ou uma derivação do zen que tenta restaurar o princípio) me vi livre dessas coisas e envolto apenas no que interessava, estudo e prática, e fiquei pronto para estar livre títulos e poder ensinar de maneira simples como um monge itinerante, ajudando as pessoas com o que eu sabia. 

Até que casei e fui morar nos Estados Unidos novamente, conheci o cristianismo e algumas ordens e conheci essa ordem aqui, isso aqui nos Estados Unidos e no Japão, e professores em Jerusalém, e principalmente na Inglaterra e Escócia, na Alemanha, Áustria, Holanda e outros lugares. E como um professor itinerante fui pela América do Norte e Central, onde sofri perseguição como em alguns lugares como aqui na América do Sul, há muitas proibições e a intromissão das autoridades nas religiões e ordens, então fui morar no Brasil um tempo e depois fui para Israel, um bebê, recém renascido, tentar viver em Jerusalém e girar por aqueles lugares, ensinando e fazendo missões da ordem. Tudo isso é muito simbolicamente interessante. Porque depois a tentativa era expandir indo ao norte da Índia, Butão, Nepal, Tibet, China, Coreias (se fosse possível na Coreia do Norte) e então voltar ao Japão. E agora aqui estou de volta. Cidadão de muitas terras.

Então veja, eu tive que deixar as outras ordens para fazer isso, elas têm suas regras, seu funcionamento. Então somando tantas sabedorias eu só poderia estar nessa ordem porque eu não iria negar nada que fosse verdade em nome de alguma organização. Eu não podia negar os ensinamentos certos do budismo, que são verdadeiros, nem os da kabalah que são verdadeiros, nem os do zen, nem Jesus, nem Rosacruz, porque eu não poderia negar o que é verdadeiro. Então tive que largar outras ordens sectárias e tive que entrar nesta, até por proteção das perseguições. Minha família não era bem esperada no Japão de volta, vamos dizer, e eu não era bem esperado nesses países cheios de proibições religiosas como os países árabes e as ditadoras e os comunistas aos quais eu queria passar novamente e dar continuidade ao que comecei, então como já estava mais perto de casa voltei do Japão direto para os Estados Unidos. Quer dizer, estive no Hawai também, e toquei com eles e alguns conversei sobre o Dhyana e sobre a ordem e sobre Jesus Cristo... Eles me falavam de religiões ancestrais e eu falava disso... Foi assim.

Eu tinha que voltar para casa e cuidar dos meus pais, não podia mais ser um andarilho, nem um monge muito menos...

Então...

Mas no zen existem muitas coisas que não são muito zen, certas tradições e transmissões, bem como rituais e devoções, muita meditação sentado, longa. Não é como estão pensando. Há muita disciplina, muito rito, muita cerimônia, ao acordar, ao andar, a distância dos passos. Vocês podem está misturando o melhor de cada uma das três tradições mais faladas aqui. Por exemplo o soto e a Rinzai têm muita diferença e tem disciplinas que muitos não conhecem.

Algumas coisas foram acrescentadas depois. Que no chan não tinha. Coisas também no chan. Que no Dhyana não tinha. E eu como vocês queria a verdade logo, e ao contrário de vocês não achava bonito toda essa coisa cultural. Que é exótico para vocês, mas nós já estamos saturados, é feio, muito "enfeite", para pouco resultado. Muito ego, muito orgulho. Não digo da escola nem das escolas, mas as pessoas em todas as escolas, quero dizer. Contendo aquela ira, em sorriso, aquele orgulho em prostrações, entendem? Sim, sabem bem...




quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Uma Sessão de Perguntas - parte 2


Uma sessão de perguntas feitas pelos estudantes a Ryokan Hiroshi

2. Qual a contribuição mais importante do estudo do budismo, no geral, para a sua vida e que o senhor poderia dizer que é universal e possa nos ajudar, a nós e à humanidade como um todo?

Eu quero acrecentar à resposta anterior, o que vai responder essa pergunta. A grande contribuição do budismo é o voto de bodhisatva. No budismo mahayana, muitas escolas, elas tem o voto de bodhisatva. Eu fiz o voto de Bodhisatva, sozinho, em minha casa, no jardim, eu me comprometi em atingir o conhecimento supremo para ajudar a todos os seres a atingir o mesmo, para ajudar todos os seres a atingir a libertação, para ajudar todos os seres a encontrar a verdade, Nirvana, ou fosse lá o que fosse isso. Isso me deu um impulso imenso, em minha visão, em minha prática, nos resultados. Eu não estava procurando a verdade como dizemos aqui, para mim, para meu ego, para minha satisfação, mas pelo bem de todos os seres. E isso me impulsionou muito. E isso é uma visão universal, útil, para qualquer um, de qualquer religião, como se pratica aqui, isso vem do voto do bodhisatva!

Então a maior contribuição entre tantas, na minha vida, do budismo, foi o voto de bodhisatva. E é isso que eu recomendo ter como meta, essa é a motivação, a melhor delas. Porque é para o bem dos seres, e não é qualquer bem, é a libertação, salvação, iluminação, purificação, desobstrução. Não é para uma liberdade nem uma felicidade idiota, egoista. Aqui no Brasil temos o exemplo de certos cristãos. Por que eles vão tentando levar a pessoa a se converterem? Por que eles são tão chatos? É simples, porque eles querem salvar a todos. Embora a salvação deles, na doutrina cristã,  não tenha nada a ver com a sua, nem com levar pessoas a conversão, eles insistem nisso muito, por quê? Porque eles se preocupam em salvar os outros. Isso devia ser uma lição para vocês. Isso tem um significado profundo. Isso mostra como pessoas em ordens são muitas muito egoístas e arrogantes. Falta humildade para compreenderem isso, compreenderem que lhes falta amor, compaixão, que são egoístas. Essas são as principais características do bodhisatva, amor e compaixão. Eu não vi muita coisa aqui assim no meio budista nem no meio das ordens. 

Eu diria que isso é a principal contribuição para o mundo, mas como você pode ver, não é exclusividade dos budistas, pessoas de outras religiões muitas vezes são muito mais dedicadas do que os budistas. Na escola dhyana no geral esse tema não é muito falado, porque não existe muito como ensinar uma pessoa a amar os outros, a ser compassiva, não existem os treinos, rituais e simulações dos vajrayanas, mas tem como ensinar a ser menos egoísta, a ver melhor a interdependência... Então quando a pessoa está pronta faz o voto de bodhisatva, não é algo programado, que vai acontecer num certo estágio, não, é uma consequência, tem que ser sincero, de coração. Mas na escola dhyana também não existe a busca da iluminação, o que existe são os meios hábeis de ser iluminado aqui agora para o bem dos seres, não pode ser para si, não adianta. Existem muitos trabalhos e distribuição de tarefas, é ajudar, obedecer, um servir sem fim, então ou a pessoa entende o significado. que ela é egoísta, só pensa em si, ou de que antes estava presa pelo seu próprio egoísmo e arrogância (Buda chama da presunção, a raiz do ego), ou ela se pergunta "quando é que vão me ensinar o dhyana?" e vai embora decepcionada. 

O que eu digo ser o mais importante para todos é isso, essa é a grande contribuição, viver como um bodhisatva, viver para o outro, cada ação de sua vida, está contribuindo para, você sabe que é para atingir esse fim de servir, de esclarecer, de libertar. Só que nós não fazemos isso com doutrina, é diferente. Nós simplesmente estamos presentes, estamos ali, junto, para ser luz e ponte, a pessoa tem que fazer a leitura da grande compaixão, nós temos que ser lidos como caracteres no livro da compaixão, isso é difícil, por isso deve ser praticado. As ações, os feitos, vão ensinar...

Ryotan Tokuda usa muitas comparações com os místicos e filósofos cristãos, sobre a questão de Nirvana, e outras bem profundas, isso é muito bom, abre nossa compreensão encerrada numa linguagem para outra linguagem estranha do oriente. Existe a história de Francisco e sua compaixão pelas pessoas e pelos animais. Eu comparar muitas vezes a prática, e a motivação dos cristãos, que agem como verdadeiros bodhisatvas, não ficam esperando um momento surreal que ninguém sabe como é para poder sair ensinando. Não se espera o céu se abrir e dizer "oh, estou salvo!", ele sabe que no final está salvo e vai levar isso a outro. Assim como no Norte [(América do Norte, Europa)] o cristianismo e os missionários estão esfriando houve um grande esfriamento dos bodhisatvas depois da expansão do budismo porque ele ficou preso a instituições e linhagens e votos oficiais.

Quando fiz oficialmente o voto de bodhisatva eu já estava praticando ele décadas. Existe uma resistência não só a outras religiões praticando budismo, mas principalmente aos budistas mesmo, em avançar, ensinar a avançar, como uma coisa para poucos. Isso não está restrito a monges, nem a budistas, é um caminho simples que pode se somar a qualquer caminho. O caminho do despertar, de andar desperto, de andar em espírito, na consciência. Não é preciso ler todos os livros nem passar horas sentado.

O mahayana surgiu como uma valorização da vida não monástica como meio, mas depois isso também perdeu a força. Buda instruiu também reis e aos reis como instruir todo o povo. Mas isso é esquecido e volta novemente o monopólio monástico. Bohidharma instruiu reis e gente do do povo, os pais instruiram os filhos. Mas depois no chan mesmo surgiu uma divinização do Buda, dos bodhisatvas, dos monges, e uma sacralização errada: se um novato tinha algum insight isso era atribuído a alguma divindade ou para ser aceita tinha que ser vista como revelada por um buda ou uma forma especial do Buda. O ensinamento era desprezado em sua eficácia prática e a transmissão super valorizada, então surgiram as degenerações, a aceitação dos devas de outras religiões como sendo parte de um novo panteão de divindades agora budista, de bodhisatvas. 

Mas a verdade é isso, os bodhisatvas somos nós, temos que ser. Estas pessoas na época queriam ser grandes autoridades por seus próprios interesses. Qualquer um que estuda a história do chan sabe disso. E Buda ensinou a fazer isso por compaixão dos seres. É uma grande diferença. Então eu vejo que manter essa motivação é difícil e é o principal e universal: se tornar um bodhisatva pelos outros.

segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Uma Sessão de Perguntas - parte 1

Uma sessão de perguntas feitas pelos estudantes a Ryokan Hiroshi

Estou aqui hoje à disposição da ordem para todo o tipo de pergunta. Comecemos sem delongas!

1. O senhor sendo um roshi ou um mestre zen apresenta alguma visão para nós que não somos do zen e mesmo que não são budistas que nos convenceria a praticar a psicologia budista ou a didática ou a meditação? Que vantagens temos nós da ordem em praticar isso?

[Um momento de riso]

R. Bem, eu já sabia que essa pergunta surgiria... Mas veja que o senhor colocou de uma forma que são muitas perguntas em uma. Tenho muitas observações sobre ela. É uma pergunta importante.

Primeiro, eu não sou um mestre zen, não uso mais esse termo (ou título) de roshi, e aqui na ordem, nessa fraternidade pelo menos uma regra é que não há mestre, ninguém pode ser chamado mestre, se eu ainda fosse "mestre zen" é um erro você me chamar de mestre mesmo assim, já que também ensino aqui na ordem. É uma reverência para comigo e irreverência para com a ordem, está invertido aí, é errado. Então saiba que não é porque não uso o termo simplesmente, mas você conhece a regra, eu estou aqui ensinando, ensino aqui, então jamais poderia me chamar de mestre. Por outro lado compreendo que você não me chamou no presente, que sua intenção não era dizer que sou "sendo", mas que fui ou fui tido como, no passado, "tendo sido". Mas é preciso que eu esclareça para outros, mas você se referiu a minha posição no zen, na sua pergunta, então devo explicar para todos.

Segundo, que depois que deixei as obrigações da ordem zen ingressei numa ordem que prepara pessoas de qualquer religião, para o zazen e para ser um "mestre zen", ou seja, um professor zen, seja qual for sua religião ou escola (não vou citar o nome porque apesar de existirem algumas escolas assim no Japão vou fazer algumas críticas construtivas a essa escola aqui). 

Eu não vim aqui convencer, só apresentar algumas ferramentas nas quais sou especialista, diga você; outros professores vão apresentar outras; você é que vai avaliar a que é que vai ser útil para o seu objetivo.

No objetivo geral da ordem, tem relação com o aprimoramento do uso de uma ferramenta fundamental, que você já tem e mal utiliza, a principal ferramenta de todas eu diria, a consciência, que você vai estar mais consciente pela atenção, pelo tipo de atenção, pela concentração, e assim por diante.

Esqueci o resto da pergunta...

[Alguém lê uma anotação pessoal da pergunta]

Ah sim!

O mais importante vou dizer agora. Mas primeiro preciso dar uma breve advertência. No mundo hoje as pessoas estão com pressa e muito contaminada com um pensamento mau, danoso, "que vantagem eu terei nisso", é isso que o pensamento, o marxismo cultural, incutiu em todas as pessoas, porque ele diz que as pessoas pensam em termo de vantagem, mas isso não é verdade. Você tem que perguntar a essas pessoas, já que elas pensam que é assim, qual é a vantagem que ela está tendo em pensar assim, que vantagem quer tirar para si em lhe ensinar tal coisa estúpida? Porque nós somos algo, não somos? Qual a vantagem disso? Porque o insatisfeito com a vida não então se mata? Não estou dizendo que se mate hein! Porque o insatisfeito consigo mesmo resolve fácil, se mata e pronto. Não. Nós estamos num determinado estado de consciência. Nós somos algo e você faz assim, muita coisa, porque é o que você é, porque é o que você é agora, porque você é gente, porque você se tornou meditativo, simplesmente por isso. Por que eu me tornei meditativo? Porque eu me tornei meditativo. Pronto. No zen dizem porque meditamos: porque meditamos. Não é para que. Essa é a resposta. Essa pseudo inteligência que quer sempre ganhar algo é o caminho oposto, é estupidez. Você faz e pronto, porque você quer, porque você gosta, porque você é, e pronto. No zen não se procura vantagem, não procura provocar algo, é o contrário. Você falou de zen, então eu digo isso, no zen é o contrário, você aquieta. Tem um cara que chamam mestre, não é porque ele é o sábio, é como a brincadeira de "o mestre mandou", tem o mestre para você não precise se preguntar por que, você obedece e pronto. Hora de levantar, hora de trabalhar, hora de comer, hora de sentar [zazen], hora de andar, hora de deitar, hora de começar tudo de novo...

Perguntaram a um mestre zen porque ele andava de uma lado para o outro [praticando a meditação andando] se já era iluminado, ele disse, "porque já sou iluminado". A pessoa surpresa e sem entender perguntou porque ele andava assim antes, ele disse "porque eu não era iluminado". Entende?

Então, essa é uma razão para praticar. 

Mas se você é agnóstico, ateu ou cético você precisa praticar para ver isso, para ter uma experiência pessoal convincente e uma compreensão da realidade tal qual é ou expandir sua visão, seu meio de investigação. Não se trata de zen ou de budismo, se trata da verdade, você precisa de ajuda, para vê-la. Alguns irmãos aqui, muitos, eram assim e entraram na ordem para isso, para descobrir isso, uns pela fé, uns pelo observação empírica, outros pela lógica ou por tudo isso somado, que é o certo, eles mudaram de ideia. Uma razão é para ver isso, que ensina a escola.

Veja que Buda não ensinou isso diretamente, mas se juntar algumas partes do que ele disse sobre isso, você tem esse resultado. Ações que fez têm um significado nisso. Seria muito longo e complexo mostrar isso aqui e agora, que envolve vários textos, e ainda mais não seria suficiente. 

Não ser suficiente entender o que está escrito é outra razão. Para muitos é assim. 

Você precisa apreciar por si mesmo. Aí você pode argumentar que Buda não explicou, mas alguns patriarcas e autores zen, e até de outras escolas explicou isso muito bem e que você já entendeu e já está satisfeito. Não está. Lá no fundo, numa madrugada escura ou no meio da depressão ou das notícias ruins do mundo vai surgir uma dúvida, dependendo do seu estado de consciência você não vai satisfazer aquela dúvida, ela existe. Então isto é outra razão, para que não reste dúvida, porque a dúvida é um obstáculo. E vocês aqui sabem que com dúvida não se vai longe, não se dá um passo significante.

Você pode dizer que está bem na sua religião sem interferência do método de outra ou que se contenta com a sua fé e que ela é suficiente. Isto é bom, mas depende da fé em que. A fé é bom, e suficiente, mas só se ela estiver na coisa certa. Se ela estiver errada? De nada serve, é lixo, enganação. Se, digamos, coincidentemente, aquilo que você tem fé é verdadeiro você acertou o grande prêmio. Mas se você colocou ela em coisa errada, de que adianta? Você está perdido. Suponha que você depositou a fé num totem de pedra e seus amuletos e talismãs sua vida toda, você teria perdido uma vida numa mentira. O que ganhou com isso? Que experiência? Lamentável. Então para eliminar essa dúvida essa prática também é recomendada, é útil. Não é duvidar da sua fé, mas imagine algumas fés erradas que existem e logo você vai entender, é uma coisa prática, não é filosófico-dogmático, você vai se dirigir para uma certa coisa, não para os objetos de sua fé, a princípio é outra coisa e no final só é que você vai constatar que é igual. A procura do verdadeiro.

Ainda eu poderia falar dos outros usos na ordem, um ´por um. Mas vocês devem saber. O primeiro é a questão do estar consciente, você foca no espírito, na consciência, sua mente se liga à realidade das coisas, a realidade é espiritual, não é material. Do contrário você estaria ligando a mente às impressões mais fortes, a materialidade e qual o resultado disso? Você sabe o que acontece com a matéria. 

O segundo motivo é que é uma psicologia. As outras escolas, inclusive de budismo, acreditam que você vai limpando o espelho até ele ficar limpo e depois ele está limpo para sempre. Mas isso não acontece, você precisa estar vigilante o tempo todo e não deixar a poeira assentar no espelho de novo, ou seja, as impurezas mentais, mesmo quando arrancadas totalmente, elas voltam, pois o espelho sempre reflete a imagem, e o espelho está no mundo agora, e no mundo tem poeira, e se você permitir tudo volta novamente, então é um treino, vigilância e limpar o espelho. Você precisa tomar banho todos os dias. É simples. Você precisa limpar a mente todos os dias. Isso é um auxílio, um processo intencional e racional, que vai colaborar com o trabalho espiritual na ordem, e em qualquer religião verdadeira inclusive. Veja que não estou nem falando do produto final, só do processo.

E por último, o mais mundano de tudo, é uma terapia. Aí entramos em longos detalhes e inúmeras aplicações que não cabe aqui, mas para cada pessoa um caso. A pessoas estão doentes, a humanidade está doente, e não é agora, é sempre, isso é um desvio de Nirvana, as pessoas poderiam estar numa vida de harmonia e conhecimento, mas estão num mundo de caos e ignorância que tem pouca sabedoria. Cobiça, aversão e ignorância são a causa desse estado de coisas, de mundo, de seres. Em última análise a terapia vai curar essa doenças, esse desvio. Mas ela começa com passos que vão curar os derivados desse trio maléfico aqui agora. 

Isto é bom para a vida, a convivência, a compreensão, a liberdade, o trabalho bem feito, a família equilibrada, a saúde, a paz, e o desenvolvimento de seus potenciais. Você não precisa se apegar a isso, pois isso não é tudo, é só uma pequena coisa, uma pequena parte, um barquinho, uma ferramenta, mas se toma isso como religião, o barquinho, você estará errado, é uma terapia, uma ajuda para a cura.

Então você tem que estar um tempinho do dia numa tarefa atento, olhando a consciência, como tudo estando e sendo fenômeno na consciência, estar ciente disso, lembrado, e observando tudo, vigilante, ao que acontece na mente, vendo os fenômenos na mente. Isso é só um início, um treino, mas que tem que funcionar desde a primeira vez, não é para o futuro. Em muitas escolas é para o futuro, mas para a nossa é agora. Isso então é duas coisas: instantâneo e gradual (as duas escolas zen se dividiram e cada uma ficou com só uma metade, sem entender o zen, sem o zen). Por isso eu sou zen e por isso eu não sou zen. [Zen porque ficou com tudo inteiro, não-zen porque o que se chama zen ficou só com metade].

Muitos aqui sabem como ensino a meditar andando, e sabem que existe o zazen, sentado. Sentar é apenas para aquietar o corpo, o corpo é o balde, a mente é a água. Mas você não é nem o balde nem a água, então porque se preocupar com isso? Bem, essa era uma questão inicial da escola da não-mente. Nós falamos apenas de costume, não vamos entrar aqui nessa questão. Mas se você só meditar sentado vai demorar, porque você ainda está se identificando com a mente, você é o que olha para o fundo do balde através da água, não é o balde, nem é a água. É claro que vai precisar aquietar um pouco para ver o fundo do balde no início, mas depois que você já o viu, já o conhece, para que vai ficar olhando para o fundo do balde? Não tem nada aí! Você já viu o fundo, os lados e já viu a uma refletida na água. Mas você já viu seu próprio rosto? Você já viu todo o resto que o balde com água pode refletir se você sai andando? Então meditar andando é um treino para a vida. Você precisa olhar para fora do balde, para si mesmo, para o universo todo que existe agora e antes e depois, descobrir as leis, descobrir o desconhecido. Então se desapegue desse balde com água pelo amor de Deus!

Foi isso que Buda ensinou na minha concepção. 

Ele ensinou a olhar para fora, fora do seu ponto de vista habitual, de balde ou de água, de um novo ponto de vista, solto, livre, do ponto de vista do espelho que pode refletir o infinito, infinitamente, do ponto de vista da consciência infinita. O zen está dizendo que Buda ensinou a olhar para dentro, mas não é só isso, isso é uma ínfima parte. O zen está dizendo como Hermes, que tudo que tem fora está também dentro, mas vai demorar muito de você só olhar para esse lado, se desapegue dos lados, do sujeito-objeto, você acredita mesmo que vai sustentar isso vidas e vidas? Por isso o zen verdadeiro ensina uma iluminação para já, não é esperar um satori no futuro. Na verdade não existe dentro e fora. Tudo é consciência, tudo é na consciência, olhe para você ver se não é, aí me diga. Isso é iluminação.

Muito depois você vai ver que isso são mensagens, esses reflexos, aí tem coisa do agora futuro também, que tudo tem um significado, mas agora não, agora isso é tudo e por muito tempo você só precisa disso e de estar voltando ao seu professor e trocando experiências, ele vai orientar o que for preciso. São dessas maneiras que esse ensinamento ajuda, não há que convencer, a pessoas vai se quiser quando estiver conhecendo. O convencimento não é algo que devamos tentar com isso e a vantagem é: pare de procurar vantagens, vantagens são tolices, não existem vantagens. Assista. Aquiete.

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

A Prática Incessante

Gyoji, a prática incessante

Seshin de Rohatsu de 1986

por Ryotan Tokuda

"Os rostos originais dos Buddhas e Patriarcas não podem ser vistos. O rosto original, ossos e medula dos Buddhas e Patriarcas também, como também não parecem ir ou vir. Devemos examinar a prática incessante de um só dia. Portanto, cada dia é precioso. Se vivermos em vão durante 1.000 anos, acabamos nos aborrecendo com os meses e os anos. Isto é um tris-te desperdício de tempo. Mesmo 1.000 anos de escravidão dos sentidos são redimidos por um só dia de prática incessante. Uma vida corporal de um só dia é a possessão mais valiosa de todas. Portanto, se vivermos somente um dia e possuirmos a função de todos os Buddhas, um dia é mais útil que reencarnar durante incontáveis vidas. Por isto, se o problema da vida e morte não foi decisivamente resolvido, não devemos desperdiçar um só dia sequer. Um só dia é um grande tesouro a ser altamente cotado, é melhor, muito melhor que um pe-daço de jade ou as jóias de um dragão. Sábios do passado contavam um só dia mais que seus próprios corpos e mentes. Devemos refletir calmamente sobre isto. E descobrimos algo de mais precioso que a jóia que concede todos os desejos ou riquezas. Mesmo um só dia em uma vida de cem anos não pode ser devolvido ou tomado de volta. Existirá algo que possamos fazer, alguma ação, algum método para que o recuperemos? Tal não existe. Se desperdiçamos tempo, somos enredados como a pele enreda o corpo. Santos e sábios davam mais valor a cada dia e a cada mês que às suas próprias vida e ao seu país. Se o tempo for desperdiçado, seremos cativados pelo status e pela fortuna do mundo impermanente. Se evitarmos, viveremos no Caminho. Se tivermos determinação, não passaremos um só dia inutilmente. Pratiquemos e proclamemos o Caminho! Portanto, tenha em mente que os Buddhas e Patriarcas não gastam um dia sequer em prática inútil. Durante os dias tranqüilos de primavera, sentemos perto de uma janela cheia de luz e reflitamos sobre tal. Em noites de outono, de chuva fina, fiquemos em um choupana simples de floresta e nos concentremos na prática. Sentimos falta de tais tesouros porque não temos a prática. Como pode a virtude da prática ser tempo roubado? Nada nos é roubado. A virtude de muitos kalpas é roubada? O que causa o conflito entre o tempo e nós mesmos? O ressentimento, porque a nossa prática é insuficiente. Não devemos nos permitir sermos condescendentes demais conosco mesmos. Isto causa auto-ressentimento. Os Buddhas e Patriarcas também têm ligações de gratidão e de amor. Eles, contudo, as abandonam. Eles têm muitos relacionamentos, mas os abandonam. Mesmo que lamentemos, não podemos nos aborrecer com nossas relações com os outros. Se não cortarmos os liames de gratidão e de amor, os laços de gratidão e de amor nos cortarão fora. Se temos apegos com a gratidão e com o amor, devemos assim proceder. Ter apegos nos mostra que devemos cortar tais coisas.

Esta é a continuação do capítulo do Sobogenzo , capítulo Gyoji, a prática incessante. Aqui, vamos passando rápido, ele está falando sobre a importância da prática. Como se estivesse dizendo: falar sobre Zen, depois de algumas leituras, uma pessoa inteligente consegue falar, por isto existem vários tipos de Zen. O "Zen de salão" para os ocidentais. Às vezes leram alguns livros sobre o assunto e gostaram muito. Parece piada, né? Koans, etc., estas coisas são impressionantes! Fica-se impressionado e narra-se estas coisas num salão qualquer de sociedade. Com as damas, tomando café, tomando chá, batendo papo, e aí falando sobre Zen. "Isto é Zen!" Parece muito bonito, mas o fato é que nada tem a ver com ele. Por isto, às vezes precisamos em vez de boca, falar com o corpo. A boca pode mentir. Mas o que corpo está fazendo é que esclarece as coisas completamente, ao invés da fala. Então, pratiquemos quietos, mas sem cessar. O praticante Zen falante, principalmente durante o sesshin, guarda o silêncio com aquela cara... Mas se começa a falar muito, então prejudica não somente a si mas aos outros também. Depois do seshin pode-se falar, ao terminar o retiro. Assim é o Mosteiro Zen e a prática com os colegas. Depois, aqui no texto, fala-se sobre o tempo, sobre a impermanência; nós os sentimos muito pouco em muito poucas ocasiões. Quando há jovens, eles não entendem o sofrimento dos mais velhos. Quando se tem saúde, não se entende o sofrimento dos doentes. Quando tem-se força, saúde e beleza, tem-se orgulho e vaidade e não se entende o sentimento de outras pessoas. Mas estas coisas todas não dependem de si mesmo. Apenas acontecem, mas isto não é algo que dure para sempre. Logo depois... até ontem era um rapaz moço, mas hoje já está de barba branca. Isto nunca mais se pode ter de volta. Todos sabem disso. Mas sentir na alma, poucos podem.

Mestre Dogen coloca os quatro tipos de cavalos: 1) O que vendo a sombra do chicote, já começa a cavalgar; 2) O que o chicote tem que tocar a pele; 3) O outro cavalo, o chicote tem que cortar até a carne; 4) O último, o chicote tem que cortar a carne e chegar até o osso, senão, ele não sente. Isto significa que quando a pessoa encontra a morte num jornal todos os dias, é um problema dos outros. Mas se encontrar a morte de alguém mais próximo, lamenta-se: "Ele era jovem, não deveria ainda ter morrido." Depois, quando é um parente, pessoas mais íntimas, sente-se, sente-se muito e se chora. Mas depois de algum tempo, se esquece novamente. Agora , ele é aquele cavalo que só sente quando o chicote corta a carne ou o osso quando chega o seu momento. Tem que morrer amanhã. Não adianta. E assim temos os quatro tipos de cavalos.

Neste caso, o Buddha Gautama era uma pessoa muito sensível. Apesar de ser um príncipe, estava passando na cidade e vendo tudo. O Rei, seu pai, preocupado, lhe falou: "Vá passear para se divertir." E passeando, ele encontrou um velho. "Quem é este?" Um camarada respondeu: "É um velho!" Com as costas curvadas, não conseguia andar, era um velho. "O que é velho?" "Ah, todo mundo fica velho com a idade, ninguém disto escapa." "E eu também vou ficar assim?" "Pois é claro que sim! Aqueles que são nascidos, envelhecem." "Ahhh!" Sentido, ele voltou ao palácio. No dia seguinte, passeando por um outro lado, se deparou com um doente sendo carregado, suportando dores, e perguntou novamente: "O que vem a ser?". "Isto é um doente". " O que é um doente?". "Enquanto temos físico, ficamos doentes". "Então eu também vou ficar assim?". "É claro! Como todo mundo". Isto é muito simbólico, mas ele, perfeito, com saúde, jovem, viu a doença e o envelhecimento dentro de sua juventude. Encontrando com mortos sendo conduzidos ao cemitério: "O que é isto?" "Isto é a morte." "O que é a morte?". "O que é a morte? Todo mundo morre, nasce e morre." . "Eu também?". "Claro, todo mundo morre". E a quarta vez, saindo do castelo, encontrou-se com um monge, andando tranqüilamente. "Quem é este?". "Este é um monge". "Ah, talvez este seja o meu caminho". E assim o jovem príncipe estava traçando a direção de sua vida. Abandonar, renunciar. Até um dia sair do castelo. Este relacionamento amoroso, pessoal mais forte, pai e mãe, esposa, filho,etc., é uma coisa bonita, mas ao mesmo tempo agarra e amarra. Existem leigos que vivem sozinhos, solteiros.

Hoje em dia monges também podem casar. Mas antigamente, realmente se dedicando ao Caminho, todos pelo menos uma vez cortavam todas as relações. Este tipo de coisa é muito difícil. Existem koans para isto: " o dedinho mindinho". O dedinho está amarrado com uma linha de costura, uma linha vermelha. Porque é que não se pode cortar a linha? O koan é este. "Porque não se pode cortar uma linha vermelha?" Puxando um pouco se pode romper esta linha. Aqui existe um relacionamento com as pessoas. Cortar requer força. Mas havendo sentimento, desligar-se é difícil. É realmente difícil. Mas o mundo é assim. Na vida de monges, se renuncia. Abandona-se. Neste momento é a própria força ou a força dos outros. Um fio vermelho significa a relação com a família, a mulher; é real-mente difícil cortar. Mas o tempo que é tão precioso é uma coisa do mundo, mundana... Por isto, uma vez despertado surgirá esta necessidade. E quando sentir, aí surgirá o impulso de tudo largar. O trabalho, suas tarefas e funções; mas a barreira é sempre este relacionamento mais íntimo... Esta questão é mais para monges... Hoje em dia, os monges casam, mas eu digo que o casamento de um monge não é um casamento qualquer. Claro, todo mundo é assim, principalmente monges, não é uma questão de casar por acaso. Tendo-se uma certa idade, aí se deseja casar. Por que casar? Porque ficar sozinho é muito chato. Fica-se solitário. Ou talvez para alguns seja uma questão de confiança dada à sociedade. Isto é a resposta, o casamento. Mas não, aqui se trata de um amor mais profundo. Depois disto, existe alguém mais além, e isto não é por acaso. Aqui são poucos os monges, mas despertando, assustam-se com alguma coisa mais profunda, talvez a impermanência. Quando se está realmente com este sentimento, uma energia enorme leva-nos em frente.

De certa maneira, as pessoas se tornam enfim escravas dos cinco sentidos. Comida boa, escutar música, ver coisas bonitas, ler livros preciosos, arte, teatro. Mas o que acontece é que o tempo passa tão rápido que assusta. Se morrer aos setenta, oitenta anos, até que tudo bem, mas às vezes morremos tão jovens, até os bebês podem morrer. Neste momento nós realmente reagimos: "O que é isto?". O monge Ikkyu, muito cínico, andava com um crânio na ponta do bastão de peregrinação durante o Ano Novo. O ano Novo no Japão é como o Natal aqui. Aqui todo mundo fala "Feliz Natal"; ou então, "Feliz Ano Novo". Mas porque razão "feliz"? Completando o ano, a morte está chegando mais perto. "Ah, não fale isto sobre o Ano Novo! Ano Novo é uma coisa boa, você está falando em morte? Por favor, fale uma coisa alegre, mais agradável." Então ele disse: "Primeiro morre o avô, em seguida morre o pai e em terceiro lugar morre o filho." "Ah, morre todo mundo?" . "Sim, mas morrendo nesta ordem, avô, pai e filho, está muito bom. Se o filho morrer primeiro do que o pai ou o avô, isto seria uma tristeza". Por isto, os monges para sentirem a impermanência, faziam certos tipos de meditações no cemitério, vendo cadáveres; quando vinham desejos sexuais, iam lá e olhavam. Viam os corpos e os cadáveres.

Na Índia jogavam-se os cadáveres no cemitério, não enterravam, não faziam cremação. Aquela moça bonita morreu, ela ainda pode despertar desejo, mas logo depois, um dia, quando está quente, não leva nem 24 horas, começa a correr líquido, um sangue meio aguado, e começa a inchar e a mudar a cor, vermelho meio roxo, manchas; se morreu acidental-mente com água ou com fogo é mais terrível. Como eu sou monge, já encontrei vários tipos de mortes. Fui várias vezes ao Instituto Médico Legal. É uma coisa terrível. Os corpos ficam nas gavetas, na geladeira. Totalmente nus. E geralmente todo mundo está cortado de cima abaixo e mal costurado. Todos iremos para lá. Não importa se ricos ou pobres. Nem se é inteligente, não importa, tem que passar por lá, tirar todo a roupa e so-mente uma etiqueta no peito. Este corpo cheira, cheira, e passa lá um dia, três dias, uma semana... com mau cheiro. Comendo depois peixe assado, grelhado, a carne não entra mais na boca. É o mesmo cheiro, nós nos lembramos. A carne, coisas inchando e começando a abrir, com bichos; começam a vir moscas, aparece o osso, um cachorro vem e leva um pedaço. Daqui a pouco vem o vento e leva tudo. Neste momento, com o que você está apegado? Este é o outro lado da realidade. Aí vem aquele susto, a questão: "O que é a vida e o que é a morte?". "O que é o amor?". "O que é a eternidade?". "O que é o absoluto?". Estes tipos de perguntas, quando uma vez surgem, não passam mais. Se não resolvemos este sofrimento espiritual, não encontramos a paz. Mas raramente este tipo de questionamento acontece, porque neste mundo há tanta coisa bonita, tanta coisa boa, tanta coisa divertida.

Um viajante encontrou com bichos, uma onça, um tigre, leões, panteras; aí fugiu para dentro de um poço que ele por acaso descobriu. E se segurou ali dentro em um cipó; quando olhou para baixo, havia um outro bicho, uma serpente venenosa, esperando de boca aberta. Desesperado, segurava apenas a corda. E aí apareceram dois ratos, um branco e um preto, e começaram a comer o cipó. Quando acabaram de roer, ele caiu. E lá no fundo do poço encontrou uma flor aberta, que deixava cair néctar; aí ele recebeu o mel com a língua: "Ah, que doce!" E naquele momento o viajante esqueceu todos os perigos. O que é isto? Estes quatro bichos são os pontos cardeais, são os quatro sofrimentos: 1) a vida é sofrimento, 2) o envelhecimento é sofrimento, 3) a doença é um sofrimento, 4) e a morte é um sofrimento. E o cipó, ao qual ele estava agarrado, é o tempo; o dia é o rato branco e a noite é rato negro. Dia e noite. E os outros animais... A flor no poço o que é? A flor é a vida que dá as sensações para satisfazer os desejos: comida, música, estes tipos de desejos de bens materiais, sexo, etc, etc. Os jovens estão procurando alguma coisa, mas não sabem o que. Não sabem onde encontrar. Sexo, suspense. Com estas sensações instantâneas, estão esquecendo certas coisas e, inconscientemente, estão querendo fechar os olhos para outras. Então, cada vez mais estas outras coisas são mais fortes. Com isto eles querem esquecer a realidade. Mas quem despertou não pode esquecer. Naturalmente, sozinho ele começa a se afastar das pessoas e começa a meditar sozinho. Porque dentro dele aconteceu alguma coisa errada. Alguma coisa errada. Com o que realmente se pode contar? Começa a pensar: sobre seu pai, dinheiro, casa, carro, esposa, filho. Para certas pessoas a resposta é positiva: "eu tenho dinheiro, eu tenho casa, eu tenho pai." Mas para alguém mais esclarecido, realmente com que se pode contar? Nem a nós mesmos podemos conduzir livremente. Tudo despende uma força enorme. A isto se chama impermanência. Nós batemos o han, o han é um tambor de madeira, não sei se vocês notaram, primeiro bate-se sete vezes com o mesmo distanciamento entre cada batida, depois carreira rápida, depois bate-se cinco vezes, depois carreira, depois três vezes mais. E assim o nosso tempo é cada vez menor: 7,5,3,1,0. Zero. Zero! Quando é zero é a hora do adeus. Aí se vai embora. Falando desta maneira, as pessoas podem pensar: "O Budismo é tão pessimista! Por isso que eu não gosto. Tem cheiro de morte". Mas não é. Para realmente vivermos neste mundo, pelo menos uma vez ou outra, ou em alguma ocasião, é bom pensar um pouco. Pensamos que temos muito tempo pela frente. Não! Metade já se foi, passou. 2/3 já se passaram. Dentro da história japonesa, dentro da literatura, há uma palavra, goavai, que significa: as coisas lamentáveis deste mundo. Sentindo a impermanência, mais lamentável ainda. É um sentimento. Mas esta filosofia quando chega a ser mais profunda, através dos monges Zen, fica ainda mais acentuada. Como eu expressei, vendo as coisas que vi no limite deste mundo, até onde se pode gozar?

Ainda temos um pouco de tempo. Têm perguntas, sobre este assunto?... É por isto, dentro da história do Zen, que os monges abandonam suas famílias. Isto é perigoso. Este pensamento e esta filosofia, são muito perigosas hoje em dia, para os jovens principalmente, que tão facilmente se separam. Antigamente, o Sexto Patriarca cuidava de sua mãe com muito amor e ainda assim abandonou tudo. Difícil de abandonar e abandonou. É isto. Não é como hoje, que as pessoas estão tão pouco ligadas, tão irresponsáveis. Não é neste sentido. Por isto, se for uma pessoa qualquer, então não deve brincar, "ah, eu agora sou monge!". "E agora novamente vou voltar a ser leigo!". "Ah, não deu certo, então eu sou monge novamente". É desta forma que as pessoas estão brincando, quando na verdade isto é uma coisa muito séria. Por isto até agora, os grandes mestres são realmente heróis. Cortaram aquilo que não podia ser cortado. Por isto naturalmente, o treinamento deles dentro do mosteiro é diferente dos demais monges. Porque cobram de si mesmos e dos outros também as situações e as mudanças bruscas. Tem que ser sério mesmo. É assim a teoria que diz que nós devemos dedicar 99% ao treinamento; agora cortando, depois renunciando ao mundo. Amor todo mundo tem, mas este amor é limitado, apenas à sua esposa, apenas ao seu próprio filho; se o filho brigar com o filho do vizinho, em seguida começa a briga dos pais. Falam muito também, especialmente os militares, em amor à pátria, e o que é o amor à pátria? Amar a sua pátria... então começa a guerra, e gritando no campo de batalha, os filhos se vão. Vejam o resultado da Argentina: a guerra das Malvinas. É o amor limitado a si mesmo ou aos vizinhos, pátrias, estados; mas o verdadeiro amor é muito mais, uma coisa universal. Os monges, cortando estes amores particulares, penetram no amor universal ou fraternidade, uma coisa maior, e vivem neste mundo mais amplo. Esta é a missão dos monges. Não é apenas fugir da responsabilidade deste mundo. Vem agora uma outra espécie de responsabilidade de não acabar com este treinamento, a prática incessante de todos os Buddhas e Patriarcas que chegou até nós. Neste caso, isto se chama grande compaixão, já não é mais amor. É grande compaixão. É em cima disto que monges vivem. Se os monges não a tiverem, apenas quiserem ganhar uma iluminação particular, sabedoria, não terão verdadeira compaixão. No fundo, no fundo, há que se ter esta grande compaixão. Neste caso, ela não tem limites de espaço, ocidente ou oriente, sul ou norte, um país ou outro país. Não tem esta diferença de país, distância, de espaço e não tem limite de tempo, passado, presente e futuro. Aquele amor de Jesus Cristo, até agora vive. Quantas pessoas foram salvas com isto? Buddha, Confúcio, Sócrates, estas grandes figuras da humanidade, apareceram, sacrificando as suas vidas particulares e se ofereceram a todos os seres e, com isto, estão numa outra dimensão, num outro nível de pensamento, ajudando fora das coisas do mundo, em outro mundo sagrado. Este é o mundo do Dharma, como nós o chamamos; neste caso, a grande compaixão sem limites cobre tudo, todos os seres humanos, todos os seres viventes, inclusive as plantas. Esta é a filosofia fundamental budista, por isto este trabalho ecológico, com o meio ambiente, voltado para a natureza, no fundo está baseado nesta filosofia; não somente seres humanos, mas o amor, a compaixão, alcança até os bichinhos, até as plantas. Não matar, mas dar a vida pelas coisas, até as coisas materiais, insensíveis, até os bens materiais. Até isto: dar a vida até por estes objetos. Se maltratar, isto quebra, precisa então consertar. Mas se tratar bem, este relógio funciona por anos e anos sem quebrar. Então está se dando a vida, para o gravador, para o cobertor, colchões, esteiras, tapetes, etc, tudo. Não matar, significa dar a vida para as coisas. Então, deste jeito, mudam-se todos os conceitos e muito mais além ainda, mais além. Então, este amor sem limites cobre tudo, passado, presente e futuro e o espaço também, e ainda é incansável. Incansável, significa que es-tamos querendo ajudar e salvar, mas não querem aceitar, porque estão bêbados e estão adormecidos. Queremos ajudar, mas não aceitam, porque estão apegados às coisas do mundo, não escutam, não reconhecem. Não desanime, não pare, vá, vá, mesmo com muito sacrifício e muitas dores, mas não canse, vá, constantemente. As pessoas não têm natureza de Buda? Como salvar este tipo de gente? Não quero abandonar ninguém. Todo mundo tem que ser salvo. É a filosofia do Bodhisattva. Esta filosofia do Bodhisattva é incansável. Corajosa. A qualquer tipo de dificuldade pode-se fazer frente. Sozinho. Esta é a dignidade dos monges. Se não a tiver, é melhor voltar para casa. Morar com sua família, lar, aquela comida quentinha, música, aquele sorriso bonito, é bom. Depois daquela grande negação, vem esta grande aceitação, a constatação de que o mundo é todo maravilhoso. Tudo é maravilhoso. Depois de passar por isto, nós sentimos claramente. Senão, com pouco treinamento, brigando sempre, vamos nos separar. Deixemos de brincar com estas coisas agora. O Shobogenzo, a prática incessante, é para isto, não é para saber de nada mais. Zen, aqueles koans interessantes, isto não é Zen de salão, tomando chá, não, é algo que parece estar abrindo a sua barriga, saindo dos intestinos e andando, arrastando-se a dor. Senão é melhor ficar parado e viver neste mundo. Tomar banho, ir para o cinema.

Temos um pouco mais de tempo. Têm perguntas? Não sei se entenderam, perguntem para não haver mal entendidos nesta parte de renúncia ao mundo. Por favor, as senhoras aqui ficam muito preocupadas, não é isto. O Budismo Mahayana é muito amplo com a compreensão de suas famílias. Podem seguir o Caminho, não necessariamente sozinhos. O caminho é muito amplo, muito amplo, pode-se ir com 2, com 3, com um grupo, todos juntos. Mas algumas pessoas, realmente poucas, levaram aquele susto... estes homens não tem jeito, despertam. Se não houver perguntas sobre este assunto muito sério... Desculpe, mas temos que encarar esta seriedade, porque está no texto.





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