Por Ajaan Brahmavamso
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Lá estava eu, em uma terra
estranha,
tentando tanto,
abrindo mão de tanto – e para
quê?
Não estava muito certo.
Quando era bem jovem, eu queria
muito ser um maquinista. Meu avô havia levado meu irmão e a mim à Euston
Station em Londres, local onde começou uma paixão por aqueles gigantes de aço
pretos e verdes que sibilavam com tanta força. Não seria maravilhoso, eu
sonhava, se um dia eu ...
Alguns anos depois eu queria
desesperadamente me tornar iluminado. Havia lido sobre o assunto em livros.
Para um jovem sonhador, a idéia de viver numa felicidade permanente e ao mesmo
tempo salvar a humanidade exercia um apelo irresistível. Não seria maravilhoso,
eu sonhava, se um dia eu ...
Quando ouvi pela primeira vez a
história da iluminação do Buda, eu ainda estava a muitos copos de cerveja de
distância de me tornar um monge. Eu era um estudante, e fazia muitas das
atividades extravagantes que estudantes gostavam de fazer lá pelo final dos
anos sessenta – e das quais se arrependeram nos anos setenta. Mas eu andei
meditando mais ou menos – mais menos do que mais – por algum tempo, e comecei a
perceber algumas mudanças inequívocas na minha vida diária. Um dia, assistindo
a cerimônia de Vesak na Sociedade Budista local, enquanto o Venerável monge do
Sri Lanka lia a história da iluminação, eu fiquei mais e mais inspirado e
entusiasmado. Era especialmente agradável para mim a passagem na qual o futuro
Buda, sentado ao pé da Figueira-dos-pagodes fez a resolução que sacudiu a
terra:
Mesmo que meu sangue seque e meus
ossos se tornem pó, não me moverei deste local até ter penetrado a Suprema e
Completa Iluminação!
Uau! À medida que a história
avançava, um pensamento começou a se solidificar na minha mente. Mal pude
esperar pelo fim dos cânticos. Engoli impaciente uma xícara de chá, que na
ocasião era nada menos que obrigatório, e corri de volta para meu quarto na
faculdade. Já tinha ouvido muitas palestras sobre budismo, já tinha lido muitos
livros sobre o assunto. Já tinha meditado por pelo menos um ano até aquele
momento, pelo menos uma vez por semana, a maior parte das semanas. Se o Buda
pôde, por que não eu?
Assim foi que eu, com a
arrogância estúpida da juventude, um praticante novato que mal conseguia ficar
sentado quieto por trinta minutos, decidi que era hora de tornar-me iluminado.
É agora ou nunca, decidi. No dia seguinte eu fiz um teste. Tranquei a porta do
quarto e sentei na almofada de meditação. Concentrei-me e pronunciei em um tom
de voz baixo, claro e solene: Mesmo que meu sangue seque e meus ossos se tornem
pó, não me moverei desta almofada até que eu, também, me torne iluminado.
Era isso. Chega de brincadeiras.
Eu falava sério.
Quarenta minutos depois, estava
em extrema agonia. Meu sangue estava tão liquido como sempre esteve e ainda não
havia sinal de desintegração óssea, mas meus joelhos doíam pra danar! Mas o que
me incomodava realmente era que já havia passado mais de meia hora e eu não
tinha visto as luzes brilhantes e piscantes esperadas. Nem uma piscadinha que
sugerisse eu estivesse chegando mais perto. Era muito deprimente e doloroso.
Desisti. Levantei muito desapontado. Não ter me tornado iluminado estragou o
dia.
Alguns anos mais tarde e um pouco
mais de sensibilidade – embora só um pouco mais – eu estava no aeroporto de
Londres sendo levado para a Tailândia por dois bhikkhus tailandeses. Estava
indo para Bangkok para ser ordenado. Ainda lembro as palavras de despedida do
sênior dos bhikkhus, então meu professor: “Por favor, volte quando se tornar
iluminado”. Eu planejava ser um monge na Tailândia por dois anos no máximo.
Contei para meus amigos e parentes que estaria de volta em dois verões. Afinal,
dois anos inteiros como monge budista na Tailândia certamente era tempo
suficiente, mesmo para aqueles de pouca inteligência, se tornarem iluminados.
Quanto a mim, com um diploma universitário, não havia dúvida em minha mente de
que voltaria para a Inglaterra em dois anos, iluminado. Resolvido esse
problema, eu planejava casar e viver em uma comuna – claro, no País de Gales:
havia pesquisado antes de partir.
Depois de dois anos de estrada,
ficou claro que esse negócio de iluminação poderia não ser tão fácil. Por
alguma razão, embora fosse um Ocidental com um diploma de uma renomada universidade,
eu estava agindo de modo mais estúpido do que os monges tailandeses, que tinham
apenas a quarta série de uma escola de vilarejo. Minha presunção estava sendo
duramente golpeada. O estranho era que, mesmo não sendo ainda um iluminado, eu
estava experimentando a paz, a simplicidade e a disciplina da vida monástica e
não queria desistir. O que pretendia fazer na comuna no País de Gales havia
perdido seu caráter sedutor.
Em meu quarto retiro das chuvas
eu estava fazendo tudo que podia. Rumores haviam chegado à Tailândia de que a
Chithurst House fora comprada, uma Sangha havia sido estabelecida na Inglaterra
e eles precisavam de mais bhikkhus. Este seria um excelente momento para
tornar-se iluminado. Eu estava em um monastério muito calmo. Minha prática meditativa
estava bem estabelecida. Todos os sinais eram favoráveis. Então, aconteceu!
Praticando a meditação andando no
final da tarde, minha mente calma depois de horas sentado, subitamente
compreendi a causa de todos os problemas e meu coração imediatamente sentiu a
alegria da libertação. Ao meu redor, tudo parecia brilhar. Todo meu ser se
encheu de felicidade. Energia e clareza eram abundantes. Embora fosse tarde da
noite, sentei em meditação, perfeitamente atento, perfeitamente quieto. Então
deitei para descansar, e dormi assim levemente por algumas horas. Levantei às
3h da manhã e fui o primeiro a chegar ao salão de grama para a meditação
matinal. Sentei até o nascer do sol sem o mínimo de esforço e sem sonolência.
Era isso! Eu estava incrivelmente feliz por ser um iluminado. Pena que não
durou muito.
O monastério no qual isso
aconteceu era muito pobre e a comida muito tosca. Era o tipo de monastério do
nordeste da Tailândia no qual você fica feliz de comer apenas uma refeição por
dia – encarar tal provação duas vezes por dia seria insuportável! Porém, na
manhã que se seguiu a minha experiência de “libertação”, a comida estava um
pouco melhor. Junto com o rotineiro peixe podre com curry – que é feito de
pequenos peixes cozidos que foram guardados sem muita higiene até estragarem –
havia também uma caçarola de carne de porco com curry. Naquele dia, até mesmo o
abade do monastério estava visivelmente incomodado com o odor do peixe cozido e
pegou uma porção enorme do pote com carne de porco. Eu não me importei; era o
segundo na fila e havia bastante lá para mim. Porém, não cheguei até a panela
de porco. O abade derramou o que havia sobrado da caçarola de porco na panela
do peixe podre, misturando tudo, dizendo que iria se misturar no estômago de
qualquer maneira. Eu fiquei enfurecido! Que grande hipócrita! Se ele realmente
pensava assim, Por que não misturou os cozidos antes de pegar sua parte? Olhei
furiosamente para a caçarola que ele me entregou – pedaços emborrachados de
peixe fedido nadando lado a lado com minha deliciosa carne de porco – minha
única refeição da sorte arruinada. Oh! Aquele abade, como eu estava furioso com
ele! Furioso!
Então, um pensamento me atingiu
com força, ou melhor, me esmagou: talvez eu não estivesse iluminado. Seres
iluminados não sentem raiva. Arahants não se importam se comem peixe pútrido ou
um saboroso pedaço de carne de porco. Tinha que admitir que estava com raiva,
logo, eu não era um iluminado. Que decepção. Completamente deprimido, despejei
uma concha de peixe podre com porco em minha tigela. Estava demasiado
desapontado para notar o sabor da comida naquele dia.
A despeito desses obstáculos
vindos do Dhamma, como indigestão, (uma capacidade limitada para assimilar os
ensinamentos), os anos que se seguiram como bhikkhu definitivamente produziram
resultados tais como mais tranqüilidade, clareza e alegria. Eram os insights
simples, aqueles que surgem sem alarde, que se mostravam mais efetivos. Meu
desejo de ser um iluminado me parecia agora similar ao desejo infantil de ser
maquinista de trem, ou minhas ambições posteriores de ser o primeiro astronauta
inglês ... um jogador profissional de futebol ... um guitarrista numa banda de
rock ... o melhor amante em todo o colégio (me sinto muito envergonhado em
mencionar minhas outras aspirações). De certa forma, desejar ser um iluminado
era ainda mais tolo. Pelo menos eu tinha alguma idéia do que era dirigir um
trem. Quanto à iluminação, eu não tinha tanta certeza do que se tratava! E
sempre que eu tentava descobrir, perguntando aos monges mais experientes, nunca
conseguia uma resposta direta. Então, lá estava eu, num país muito estranho,
comendo peixe podre e coisas muito piores, suportando mosquitos insaciáveis e
um calor sem fim, fazendo tanto esforço, abrindo mão de tanto – e para quê? Eu
não tinha muita certeza. Então, a única coisa racional a fazer era desistir de
tentar ser um iluminado até que eu soubesse o que era a iluminação! Eu não
queria desistir de ser um bhikkhu, isso eu entendia, fazia sentido. Eu
precisava desistir de perseguir minhas fantasias, e minha idéia de iluminação
era a mais grandiosa.
Depois que o insight acontece,
raramente pensamos que agora somos sábios, pois ficamos subjugados pelo
pensamento de quão estúpidos fomos. Como pude ser tão estúpido? Os textos
sagrados budistas e tantos bons professores enfatizam que TORNAR-SE É
SOFRIMENTO – tornar-se qualquer coisa. Tornar-se é o que o ego faz todos os
dias. Tornar-se molda a identidade. Tornar-se é a “pele” que mantém coesa a
bolha do eu. Pare com todo tornar-se e a ilusão se despedaça.
Foi assim que terminou o meu
tornar-se iluminado. Agora a questão era QUEM é que deseja tornar-se iluminado,
se é que havia alguém? Eu investiguei o não-eu, que é algo mais esclarecedor do
que tentar tornar-se iluminado. Mas as pessoas ainda me perguntam, como fazem
com outros bhikkhus, a questão fundamental: você é iluminado? Agora eu tenho
uma resposta esplêndida, plagiada do falecido Venerável Ananda Mangala
Mahanayakathera, (sei que ele não se importaria), que, excelente professor que
era, deu a réplica perfeita para essa questão:
Não senhor! - Ele disse
–eu não sou iluminado,
mas sou altamente eliminado!
Nota do Editor:
"Tornar-se" também pode ser interpretado como vir a ser, devir, ou
ser/existir, como um dos elos da cadeia da origem dependente.
Agradecemos a colaboração de
Derley Menezes Alves na tradução deste artigo do inglês para o português.
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