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terça-feira, 24 de maio de 2016

As Características da Insubstancialidade ou do Não-Eu

Aqui mais um sutta sobre o ensinamento mais central do budismo, nas palavras do próprio Buda, anatta, a insubstancialidade (comumente traduzido ao pé da letra como não eu). Ao lado de sunna e sunnata esse termo tem sido provavelmente também o aspecto menos entendido do ensinamento, principalmente por aqueles de fora do budismo ou os que se aproximam com uma análise comum e superficial.
A dificuldade sobre a compreensão de anatta por alguém de fora é bastante compreensível, pois sem a experiência necessária é praticamente impossível um entendimento ao menos próximo do seu real significado. Se a pessoa não se esforça, se não pensa corretamente, se não vê corretamente também não vai meditar corretamente e por isso não vai compreender corretamente, isto é não surgirá nessa pessoa o insight ou a compreensão correta. Mas esse sutta é um modelo de um teste cientifico que o Senhor Buda oferece a quem sinceramente busca começar a entender e ver por si mesmo o que é anatta.
Ele pode ser aplicado tanto na meditação, quando aquietando nossa mente e atingindo um estado de maior clareza mental observamos os diversos elementos de nossa mente e de nossa experiência, quanto na nossa vida cotidiana sobre qualquer coisa que observarmos ou que dirigirmos nossa atenção e sinceramente procurando ali algum, certamente não encontraremos. Essa realidade é a mais fundamental de todas, a impessoalidade e insubstancialidade de todos os fenômenos, pois mesmo em Nibbana não se pode encontrar uma egoidade ou entidade pessoal ou identificação pessoal. As outras duas características da existência ao lado de anatta, anicca (impermanência) e dukkha (insatifatoriedade), são fruto da delusão, da ignorância, e são superadas com o despertar, quanto a anatta não há como dizer que cessa ou que continua, pois ninguém pode dizer se existe ou não existe na verdade o não-eu, ou a insubstacialidade fundamental, assim como poderia cessar aquilo que não é de fato?
Nibbana não pode ser tido como um eu ou como um não-eu, nem como meu, nem como meu eu, nem como meu não-eu, como é dito em outro sutta. Por isso a iluminação budista não consiste no atingimento de um “eu verdadeiro” ou “eu superior”, mas na libertação da ignorância, e do sofrimento, que só pode ser alcançado por uma transformação mental, uma purificação radical que extingue todos os obstáculos à verdade. Ver que a insatisfatoriedade e a impermanência são realidades é relativamente bem fácil, mas ver que não há um eu em nós nem em coisa alguma é mais difícil, porém acessível a quem se aproxime de forma correta. Aplique a fórmula se quiser verificar por si mesmo.


Samyutta Nikaya XXII.59
Anatta-lakkhana Sutta
As Características do Não-Eu
Para distribuição gratuita como um presente do Dhamma

Assim ouvi. Em certa ocasião, o Abençoado estava em Benares na Reserva de Caça em Isipatana. Lá ele se dirigiu ao grupo de cinco monges desta forma: “Bhikkhus” – “Venerável Senhor,” eles responderam. O Abençoado disse o seguinte:

“A forma, bhikkhus, é não-eu. Pois, bhikkhus, se a forma fosse o eu, essa forma não conduziria ao sofrimento e seria possível obter da forma: ‘Que a minha forma seja assim; que a minha forma não seja assim.’ Mas porque a forma é não-eu, a forma conduz ao sofrimento e não é possível obter da forma: ‘Que a minha forma seja assim; que a minha forma não seja assim.’ 

“A sensação é não-eu...

“A percepção é não-eu...

“As formações são não-eu...

“A consciência é não-eu. Pois, bhikkhus, se a consciência fosse o eu, essa consciência não conduziria ao sofrimento e seria possível obter da consciência: ‘Que a minha consciência seja assim; que a minha consciência não seja assim.’ Mas porque a consciência é não-eu, a consciência conduz ao sofrimento e não é possível obter da consciência: ‘Que a minha consciência seja assim; que a minha consciência não seja assim.’ 

“O que vocês pensam, bhikkhus, a forma é permanente ou impermanente?

“Impermanente, senhor.

"E aquilo que é impermanente é sofrimento ou felicidade?

“Sofrimento, senhor.

“E é adequado considerar o que é impermanente, sofrimento, sujeito a mudanças como: ‘Isso é meu. Isso sou eu. Isso é o meu eu’?

“Não, senhor.

“...A sensação é permanente ou impermanente?

“Impermanente, senhor.

“...A percepção é permanente ou impermanente?

“Impermanente, senhor.

“...As formações são permanentes ou impermanentes?

“Impermanentes, senhor.

“O que vocês pensam, bhikkhus, a consciência é permanente ou impermanente?

“Impermanente, senhor.

“E aquilo que é impermanente é sofrimento ou felicidade?

“Sofrimento, senhor.

“E é adequado considerar o que é impermanente, sofrimento, sujeito a mudanças como: 'Isso é meu. Isso sou eu. Isso é o meu eu’? 

“Não, senhor.

“Portanto, bhikkhus, qualquer forma, quer seja do passado, futuro ou presente, interna ou externa; grosseira ou sutil; inferior ou superior, próxima ou distante: toda forma deve ser vista como na verdade é, com correta sabedoria: ‘Isso não é meu, isso não sou eu, isso não é o meu eu.’

“Qualquer sensação...

“Qualquer percepção...

“Quaisquer formações...

“Qualquer consciência, quer seja do passado, do futuro ou do presente, interna ou externa; grosseira ou sutil; inferior ou superior; próxima ou distante: toda consciência deve ser vista como na verdade é, com correta sabedoria: ‘Isso não é meu, isso não sou eu, isso não é o meu eu.’

“Vendo dessa forma, o nobre discípulo bem instruído se desencanta com a forma, se desencanta com a sensação, se desencanta com a percepção, se desencanta com as formações, se desencanta com a consciência. Desencantado ele se torna desapegado. Através do desapego a sua mente é libertada. Quando ela está libertada surge o conhecimento: ‘Libertada.’ Ele compreende que: ‘O nascimento foi destruído, a vida santa foi vivida, o que deveria ser feito foi feito, não há mais vir a ser a nenhum estado.’”

Isso foi o que o Abençoado disse. Os bhikkhus ficaram satisfeitos e contentes com as palavras do Abençoado. E enquanto essa explanação estava sendo dada, as mentes do grupo de cinco bhikkhus, foram libertadas das impurezas através do desapego.


Obs.: note a similaridade de mais este sutta com o Sutra do Coração, das tradições mahayanas.