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quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

AMOROSIDADE


Muitos hoje se aproximam do budismo por ser uma religião mais racional e prática, enxuta e pragmática em sua moralidade que contempla uma vasta gama de condutas com poucos treinamentos ou “preceitos”, sem nenhum aspecto metafísico a ser aceito ou crido de antemão e, embora talvez a religião mais extensa em seus livros sagrados, não possui uma sabedoria dogmática, tem quase nenhuma mitologia e mesmo em sua simbologia é clara e objetiva, na grande maioria das vezes explicadas imediatamente pelo próprio Buda, o que dificulta a diversidade de interpretações causadoras de celeumas como temos em relação a outros livros sagrados a exemplo da bíblia e do alcorão.

Isso também foi o que me aproximou do budismo, além de alguns outros fatores. Entre eles sempre destaco dentro dessa temática a quase singularidade de não ser uma religião revelada e de oferecer um método para ver por si mesmo, Buda diz “seja seu próprio mestre” e “não acredite só porque alguém disse ou porque eu estou dizendo”. O “faça você mesmo” e o “venha e veja”, são dois aspectos que, no meu entendimento, o budismo oferece e satisfaz qualquer pessoa que se aproxime dele e sinceramente experimente praticá-lo. Quer dizer, o Buda não dá uma série de informações nas quais você deva acreditar ou aceitar ou ver se está de acordo com o que você pensa; ele não se diz o dono da verdade e que você estará salvo se acreditar nele e condenado se duvidar. Ele nos convida a experimentarmos, em nossas vidas, a prática de uma forma de moral e de uma forma de meditação que nos levará gradualmente à felicidade e libertação da ignorância, do medo, do sofrimento, etc. e ele oferece um método eficaz para isso, e comprovaremos essa eficácia por nós mesmos, sem ter que acreditar cegamente, mas sim fazendo por nós mesmos e experimentando os seus resultados. Ele também não oferece uma sabedoria axiomática ou decorada com regras de ouro e explicações fabulosas, ele nos oferece uma sabedoria elevada em seus resultados, que deve ser estudada, compreendida, mas que só poderá ser comprovada em seus mais elevados objetivos se levamo-la à prática. Ele não diz “isto é assim, acredite porque eu sou Buda e vi por mim mesmo”, ele diz “venha e veja”, veja você mesmo, você deve ver o que ele vê e não simplesmente crer.

Entretanto, muitas vezes um pouco tarde vamos notar que o aspecto moral e da boa vontade é um aspecto primordial, ou seja, que vem primeiro no treinamento gradual, é a primeira prática a ser experimentada. Sem a “purificação da mente” não há budismo, e para que haja a purificação da mente devemos experimentar na prática a receita da virtude ética e moral do senhor Buda, experimentá-la a fim de comprovarmos seus resultados em nossa vida, mas não só isso, talvez até principalmente, para colhermos os frutos dessa conduta. Sem o que é traduzido geralmente como moradas divinas, que são as qualidades fundamentais que temos que desenvolver para avançar no caminho (amorosidade, compaixão, alegria altruísta e equanimidade), o ver por si mesmo permanecerá muito limitado. Nós não temos essas características ou capacidades desenvolvidas, é preciso aprendê-las e treiná-las, pois a verdadeira e definitiva purificação mental só é atingida através da meditação avançada, quando já se pode ver e compreender por si mesmo. Buda ensina um método para desenvolver essas qualidades, treinando-as, pois são a conduta correta em relação aos seres vivos, o que evitará o conflito, o sofrimento, a carência, a insegurança, etc. na vida no mundo; além de serem considerados estados sublimes nos quais se pode obter os reais benefícios das práticas e da meditação.  Aquele que desenvolver esses estados mentais, através da conduta e da meditação, obterá a felicidade. Esse sutta trata em forma de verso do primeiro desses estados (metta, amorosidade, também traduzido como amor-bondade, amistosidade ou simplesmente amor), de como cultivá-lo e de suas vantagens.

Sutta Nipata I.8

Karaniya Metta Sutta

Amor Bondade

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Quem é hábil no que é benéfico, desejando alcançar
aquele estado de paz, age assim:
capaz, correto, honrado,
com a linguagem nobre, gentil e sem arrogância,

Satisfeito e fácil de sustentar,
sem ser exigente por natureza, frugal no seu modo de vida,
os sentidos acalmados, sábio,
moderado, sem cobiçar ganhos.

Não faz nada, mesmo que trivial,
que seja condenado pelos sábios.[
1]
Pense: felizes, seguros,
que todos os seres tenham os corações plenos de bem-aventurança.

Todos os seres vivos que existem,
fracos ou fortes, [
2] sem exceção,
compridos, grandes,
médios, curtos,
sutis, grosseiros,

Visíveis e invisíveis,
próximos e distantes,
nascidos e por nascer:
que todos os seres tenham os corações plenos de bem-aventurança.

Que ninguém engane
ou despreze outrem, em nenhum lugar,
ou devido à raiva ou má vontade
deseje que alguém sofra. [
3]

Tal qual uma mãe, colocando em risco a própria vida,
ama e protege o seu filho, o seu
único filho,
da mesma forma, abraçando todos os seres,
cultive um coração sem limites.

Com amor bondade para todo o universo,
cultive um coração sem limites:
Acima, abaixo e em toda a volta,
desobstruído, livre da raiva e da má vontade.

Quer seja parado, andando,
sentado, ou deitado,
sempre que estiver desperto,
cultive essa atenção plena:
a isto se denomina uma morada divina
no aqui e agora.[
4]

Sem estar aprisionado pelas idéias,
virtuoso e com a visão consumada,
tendo subjugado o desejo pelo prazer sensual,
ele não mais renascerá.[
5]

 



 

Notas:

[1] Como pode ser observado, os temas do sutta não correspondem exatamente às estrofes do poema. O primeiro tema – virtude ou disciplina moral – compreende do primeiro verso até a primeira metade do terceiro verso. A virtude, (sila), proporciona o sólido fundamento ético no qual se baseia o desenvolvimento da mente. As primeiras duas linhas dizem que essa base ética é tanto uma estratégia para alcançar o objetivo da iluminação bem como uma expressão do caráter da pessoa. É aceito como verdadeiro que todos os seres aspiram pela própria felicidade, todos querem ser felizes, e este sutta tem a intenção de ajudar as pessoas a alcançarem esse objetivo ensinando quais as qualidades de caráter benéficas que devem ser desenvolvidas com habilidade. Tudo que segue no sutta é uma série de descrições sobre como uma pessoa sábia e hábil, ou uma pessoa que deseja progredir na direção do objetivo, deveria se comportar no mundo. Uma lista de virtudes específicas é apresentada – gentil, não arrogante, moderado, etc. – seguida por um enunciado geral (“Não faz nada ...”) que engloba todas as demais virtudes que não foram especificadas em detalhe.

[2] Tasa va thavara, literalmente “em movimento” ou “estável”, mas o seu significado vai além do sentido literal. O que está implícito é que alguns seres estão em movimento porque estão agitados, insatisfeitos ou impulsionados pelo desejo e isso no contexto Budista compreende a noção de fragilidade ou fraqueza. De modo semelhante, quando alguém está firmemente estabelecido, tranqüilo e quieto, isso expressa uma condição de maior força e estabilidade. O amor bondade para com o primeiro tende para a compaixão pelo bem-estar dos mais fracos, enquanto que para com o último tende para a alegria altruísta pela capacidade dos fortes.

[3] Na metade do terceiro verso, a voz dos verbos muda para refletir a transição para a prática meditativa. Os verbos no imperativo, (“pense ...”), são usados para guiar a intenção no momento presente para a geração de amor bondade ou boa vontade. Enquanto que as virtudes no primeiro tema são apresentadas como conceitos, (“Ser capaz, correto ...”), a uma certa distância, aqui a linguagem é imediata e aponta diretamente para o cultivo do estado de boa vontade para com todos os seres. Isto alinha o poema com a prática de metta bhavana, ou meditação de amor bondade, e essas frases podem ser empregadas como guia para essa prática.

A geração de intenção é essencial na prática da meditação de metta, onde ela desenvolve o papel de moldar a qualidade da mente no momento presente. Ao invés de pensar em algo ou se recordar do passado, ou planejar o futuro, a pessoa adota naquele exato momento a qualidade mental de desejar o bem estar dos outros. Por conseguinte estamos passando da virtude geral para a meditação específica, para o cultivo deliberado de certos estados mentais e a intenção de manter presente um certo objeto na mente. Neste caso o objeto é o pensamento com respeito a todos os seres, enquanto que o estado mental com relação a esse objeto é a intenção ou desejo que todos os seres tenham felicidade e segurança.

A mudança de voz no sexto verso indica a descrição de algumas das diretrizes para a prática de ações benéficas.

[4] A meditação de metta é caracterizada como um dos quatro brahma viharas ou moradas divinas. Várias nuances de amor maternal são também empregadas para descrever os outros três brahma viharas ou qualidades divinas do coração: compaixão (tal qual uma mãe em relação a um filho doente), alegria altruísta (tal qual uma mãe em relação a um filho que vai em busca do seu lugar no mundo), e equanimidade (tal qual uma mãe ao ouvir sobre os eventos da vida de um filho adulto).

O nono verso estabelece uma relação crucial entre a meditação de metta e a meditação vipassana, (insight), através da clássica ênfase na atenção plena.

[5] O último verso do sutta desloca a ênfase da meditação para a realização da sabedoria – o plano mais elevado na aspiração Budista. Esse é o cume do caminho, a destinação que é alcançada quando a prática diligente de meditação é desenvolvida sobre uma base sólida de virtude. A ênfase é colocada na purificação da visão, a habilidade para ver com clareza. Menciona a eliminação do desejo como um elemento das experiências e nomeia a emancipação do renascimento como o fruto da iluminação.

 

 

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