Aqui mais um sutta sobre o ensinamento mais central do
budismo, nas palavras do próprio Buda, anatta, a insubstancialidade (comumente
traduzido ao pé da letra como não eu). Ao lado de sunna e sunnata esse termo
tem sido provavelmente também o aspecto menos entendido do ensinamento,
principalmente por aqueles de fora do budismo ou os que se aproximam com uma
análise comum e superficial.
A dificuldade sobre a compreensão de anatta por alguém de
fora é bastante compreensível, pois sem a experiência necessária é praticamente
impossível um entendimento ao menos próximo do seu real significado. Se a
pessoa não se esforça, se não pensa corretamente, se não vê corretamente também
não vai meditar corretamente e por isso não vai compreender corretamente, isto
é não surgirá nessa pessoa o insight ou a compreensão correta. Mas esse sutta é
um modelo de um teste cientifico que o Senhor Buda oferece a quem sinceramente
busca começar a entender e ver por si mesmo o que é anatta.
Ele pode ser aplicado tanto na meditação, quando aquietando
nossa mente e atingindo um estado de maior clareza mental observamos os
diversos elementos de nossa mente e de nossa experiência, quanto na nossa vida
cotidiana sobre qualquer coisa que observarmos ou que dirigirmos nossa atenção
e sinceramente procurando ali algum, certamente não encontraremos. Essa
realidade é a mais fundamental de todas, a impessoalidade e insubstancialidade
de todos os fenômenos, pois mesmo em Nibbana não se pode encontrar uma egoidade
ou entidade pessoal ou identificação pessoal. As outras duas características da
existência ao lado de anatta, anicca (impermanência) e dukkha
(insatifatoriedade), são fruto da delusão, da ignorância, e são superadas com o
despertar, quanto a anatta não há como dizer que cessa ou que continua, pois
ninguém pode dizer se existe ou não existe na verdade o não-eu, ou a
insubstacialidade fundamental, assim como poderia cessar aquilo que não é de
fato?
Nibbana não pode ser tido como um eu ou como um não-eu, nem
como meu, nem como meu eu, nem como meu não-eu, como é dito em outro sutta. Por
isso a iluminação budista não consiste no atingimento de um “eu verdadeiro” ou
“eu superior”, mas na libertação da ignorância, e do sofrimento, que só pode
ser alcançado por uma transformação mental, uma purificação radical que
extingue todos os obstáculos à verdade. Ver que a insatisfatoriedade e a
impermanência são realidades é relativamente bem fácil, mas ver que não há um
eu em nós nem em coisa alguma é mais difícil, porém acessível a quem se
aproxime de forma correta. Aplique a fórmula se quiser verificar por si mesmo.
Samyutta Nikaya
XXII.59
Anatta-lakkhana Sutta
As Características do
Não-Eu
Para
distribuição gratuita como um presente do Dhamma
Assim ouvi. Em certa
ocasião, o Abençoado estava em Benares na Reserva de Caça em Isipatana. Lá ele
se dirigiu ao grupo de cinco monges desta forma: “Bhikkhus” – “Venerável
Senhor,” eles responderam. O Abençoado disse o seguinte:
“A
forma, bhikkhus, é não-eu. Pois, bhikkhus, se a forma fosse o eu, essa forma
não conduziria ao sofrimento e seria possível obter da forma: ‘Que a minha
forma seja assim; que a minha forma não seja assim.’ Mas porque a forma é
não-eu, a forma conduz ao sofrimento e não é possível obter da forma: ‘Que a
minha forma seja assim; que a minha forma não seja assim.’
“A
sensação é não-eu...
“A
percepção é não-eu...
“As
formações são não-eu...
“A
consciência é não-eu. Pois, bhikkhus, se a consciência fosse o eu, essa
consciência não conduziria ao sofrimento e seria possível obter da consciência:
‘Que a minha consciência seja assim; que a minha consciência não seja assim.’
Mas porque a consciência é não-eu, a consciência conduz ao sofrimento e não é
possível obter da consciência: ‘Que a minha consciência seja assim; que a minha
consciência não seja assim.’
“O
que vocês pensam, bhikkhus, a forma é permanente ou impermanente?
“Impermanente,
senhor.
"E
aquilo que é impermanente é sofrimento ou felicidade?
“Sofrimento,
senhor.
“E
é adequado considerar o que é impermanente, sofrimento, sujeito a mudanças
como: ‘Isso é meu. Isso sou eu. Isso é o meu eu’?
“Não,
senhor.
“...A
sensação é permanente ou impermanente?
“Impermanente,
senhor.
“...A
percepção é permanente ou impermanente?
“Impermanente,
senhor.
“...As
formações são permanentes ou impermanentes?
“Impermanentes,
senhor.
“O
que vocês pensam, bhikkhus, a consciência é permanente ou impermanente?
“Impermanente,
senhor.
“E
aquilo que é impermanente é sofrimento ou felicidade?
“Sofrimento,
senhor.
“E
é adequado considerar o que é impermanente, sofrimento, sujeito a mudanças
como: 'Isso é meu. Isso sou eu. Isso é o meu eu’?
“Não,
senhor.
“Portanto,
bhikkhus, qualquer forma, quer seja do passado, futuro ou presente, interna ou
externa; grosseira ou sutil; inferior ou superior, próxima ou distante: toda
forma deve ser vista como na verdade é, com correta sabedoria: ‘Isso não é meu,
isso não sou eu, isso não é o meu eu.’
“Qualquer
sensação...
“Qualquer
percepção...
“Quaisquer
formações...
“Qualquer
consciência, quer seja do passado, do futuro ou do presente, interna ou
externa; grosseira ou sutil; inferior ou superior; próxima ou distante: toda
consciência deve ser vista como na verdade é, com correta sabedoria: ‘Isso não
é meu, isso não sou eu, isso não é o meu eu.’
“Vendo
dessa forma, o nobre discípulo bem instruído se desencanta com a forma, se
desencanta com a sensação, se desencanta com a percepção, se desencanta com as
formações, se desencanta com a consciência. Desencantado ele se torna
desapegado. Através do desapego a sua mente é libertada. Quando ela está
libertada surge o conhecimento: ‘Libertada.’ Ele compreende que: ‘O nascimento
foi destruído, a vida santa foi vivida, o que deveria ser feito foi feito, não
há mais vir a ser a nenhum estado.’”
Isso foi o que o
Abençoado disse. Os bhikkhus ficaram satisfeitos e contentes com as palavras do
Abençoado. E enquanto essa explanação estava sendo dada, as mentes do grupo de
cinco bhikkhus, foram libertadas das impurezas através do desapego.
Obs.:
note a similaridade de mais este sutta com o Sutra do Coração, das tradições
mahayanas.