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sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

O COMEÇO



Numa sala com um pequeno tablado Ryokan entra balançando as mãos em saudação e diz, em voz suavemente cantada no seu sotaque japonês-americano, "meu nome é Ryokan Hiroshi, venho aqui como professor itinerante a convite de vocês"... E enquanto escrevia uma lista de temas num quadro dizia seu objetivo: ..."para estudarmos esses temas e outros que surgirão, eu falarei antes, apresentando e ensinando, pois vocês me tem por especialista, e depois conversaremos. Mas antes vamos às apresentações de cada um de vocês, por que estão aqui?"

Então ele sentou numa beira do tablado e foi mirando e apontando as pessoas segundo algum critério que transparecia no seu olhar, o que, ao final se percebeu, era por idade. As pessoas diziam seus nomes e a razão de estarem ali sentados naquelas cadeiras escolares como ele bem frisou conscientizando as pessoas de suas presenças ali e de suas razões pessoais para isso.

Essa abordagem próxima, atenta e impressionante atraiu tanto a atenção das pessoas que nenhum dos estudantes tem essa lista de temas, ninguém anotou, todos estavam concentrados naquela figura, talvez encantadora por sua simplicidade e inteligência. Depois disso ele apagou o quadro e escreveu um tema diferente do que figurava como primeiro da lista. E esse alguns anotaram, "Apresentação".

APRESENTAÇÃO

Bom dia, meus amigos, já fomos todos apresentados e conto com sua atenção e amizade para conversarmos sobre o tema que apresentarei hoje aqui, sucintamente, porque é um tema que vai em muitos conhecimentos, sobre a proposta clínica e terapêutica do médico, como se chamou a si mesmo, o Buda. Essa proposta, indo direto ao assunto, se pode classificar em três abordagens que são três momentos e, ao mesmo tempo, três desenvolvimentos que já estavam na verdade implícitos no primeiro.

Primeiro temos a buda-terapia auto [centrada], que é a forma que todos conhecem e se tornou a prática religiosa das religiões budistas praticamente em todas que é a chamada meditação; depois temos a abordagem realmente religiosa, decodificada para a maioria como devocional ao Buda, aos budas para outros, aos budas e bodhisatvas para outros, a um certo buda do passado para outros e a um certo buda do futuro para outros (que já veio, no entender de uns, e que virá no entender de outros, então observe que cada escola de budismo está preocupada apenas com sua linha e nenhuma fará um estudo como este nem jamais abordará o que abordaremos aqui hoje porque é uma visão de dentro e de fora de todas as escolas, como se fosse ciência da religião praticamente, mas feita por cientistas que passaram por todas as escolas em seu conjunto); depois finalmente temos a buda-terapia centrada no outro ou em todos os seres ou no caminho do bodhisatva como é conhecido.

Já devem ter notado que o estágio do meio é bem mais complexo e realmente, exigirá muito mais informação, é complicado, por isso deixarei por último, já que não teremos tempo de aprofundar nenhum deles, que pelo menos seja visto quando já tiverem uma ideia do que é o budismo na visão oriental, sua prática e seus resultados (algo que deveria ser sempre observado).

Então como foi pedido resumirei minhas teses apresentadas sobre o assunto para dar conhecimento pelo menos de sua existência e de que existem muitos estudiosos e muitas posições diferentes e que não existe consenso algum, como se quer fazer parecer, sobre determinados temas que geraram escolas filosóficas. Tudo que se conhece de budismo hoje não vem de nenhuma escola original única específica mas de combinações e desenvolvimentos da informação de um número de escolas que surgiram logo no inicio do budismo.

Com Buda ainda vivo já haviam duas escolas, ambas seguindo o ensinamento do Buda, uma que se formou nas andanças do Buda por terras mais distantes e lá permaneceu, e uma que o acompanhou desde o início até o fim da trajetória, sendo que nessa mesmo houve pelo menos uma grande cisão, com o Buda ainda vivo. Então na verdade seriam três escolas, mas esta não foi considerada mais seguindo o Buda então são duas. Isto fica mais explícito ou famoso no Sutra do Lotus, mas aparece em muitos outros suttas e sutras, é só prestar atenção.

Só que esta dissidência, que deixou de receber o restante dos ensinamentos, considerando-o como desnecessário para eles que eram já seguidores por muitos anos, influenciou muito as outras que surgiram depois, pois os monges que encontraram essa divisão deram bastante crédito a esses outros, que obviamente haviam vivido ao lado do Buda por muitos anos. Outro ponto é que essa dissidência gerou grupamentos diferentes o que resultou em grupamentos diferentes também de ensinamentos e de pensamento. E isso também aconteceu com as outras duas divisões originais. Não é nosso objetivo aqui hoje detalhar isso nem dar nome a essas escolas, mas só mostrar a diversidade de pensamento e sua origem no princípio do que se convencionou chamar budismo já.

Então vejam que não há como não ter havido confusão, por causa de um acontecimento desse... Portanto cada escola trás a sua verdade, não quer dizer dizer que alguma detenha o conhecimento certo, autêntico e completo, também não quer dizer que não, nem que tudo que existe possa ser relativizado em relação a escolas. Não, Buda existiu e ensinou ensinamentos, que são como são, o que se diz que ele disse não altera o que ele realmente disse, existe obviamente ali muito, muito mesmo, do que ele disse.

Por isso um cânone budista não é como um cânone cristão, algo que possa ser tido como em teologia, inerrante apesar de trabalho humano de escrita, mas [sim] como trabalho humano de escrita que contém não exatamente o que Buda disse, mas da forma como foi transmitido pela tradição oral e posteriormente anotado. Esclarecido esse ponto, então entendam com isso o porque de minha abordagem, como se fosse de fora, para apresentar aos que estão de fora: porque vocês estão de fora, mesmo os que aqui são budistas, pois estão dentro de sua própria visão ou da visão de sua escola e de fora de todas as outras escolas, ou seja, da maior parte do que se chama budismo. Mais tarde verão que não existe tanta intersecção assim entre as escolas como o convívio faz parecer.

A TERAPIA CENTRADA NO INTERIOR OU AUTO-CENTRADA

Dito isso posso passar ao ponto que quase todas as escolas, 80% eu diria, mais ou menos, estão de acordo, sobre a necessidade da técnica, seja ela como for, que se chama meditação (afinal estou aqui para falar de meditação e como vocês podem convidar um professor que não ao menos gosta da palavra meditação para falar de meditação? Veremos). Não quero falar de visões de escolas aqui, mas apenas do ensinamento puro e simples como está registrado, seu aspecto prático.

A meditação é uma prática extremamente fácil. O ensino errado dela como uma prática difícil é apenas um erro didático (claro os professores budistas não tiveram que estudar didática nem psicologia, nem oratória, etc.). Esse erro consiste em confundir o resultado mais profundo com a própria prática. A prática é extremamente fácil, seu resultado, a concentração (Buda nunca falou em meditação) é que é difícil para nós quando estamos destreinados nisso. A controvérsia surge apenas [1] no que é essa concentração, e [2] quais são os seus níveis necessários e [3] para que ou por que precisamos praticar a concentração, chamada aqui no ocidente de meditação (não vou tocar nesses pontos controversos [1 e 2], isso vocês descobrirão por si mesmos se praticarem, somente falo do último [do 3], "para que"). Ou seja, há grande confusão por causa do uso dessa palavra, que confunde a prática com seu resultado. No oriente geralmente não existe tanta confusão porque são duas palavras diferentes, bhavana, a prática, o procedimento, para se atingir dhyana, ou a concentração. Um dos motivos para que eu use mais a palavra dhyana...

Meditar, a prática, consiste simplesmente em prestar atenção. Estão surpresos? É isso mesmo que vocês ouviram, a prática da meditação é só e simplesmente prestar atenção. A ferramenta mais importante da prática é a atenção. Buda não invetou isso, é claro. Ele praticou o que lhe foi ensinado, só que ele foi a resultados diferentes, ele tinha outras buscas diferentes daquelas de seus professores. Mas em todas as culturas essa prática existe, cada uma envolta em seus próprios procedimentos.

Aqui vocês tem essa herança judaica muito forte, os judeus meditam, o seu procedimento é meditar na lei dia e noite, ou seja, é focar a atenção no conhecimento da lei e no seu cumprimento, no comportamento o tempo todo de acordo com a lei. Os cristãos herdaram em parte essa meditação, mas muito menos, pois seu procedimento é mais dividido em duas partes, meditar na escritura, ou seja, ler remoendo, recebendo a inspiração divina, lentamente e com plena atenção e a outra é bem parecida, eu diria que igual nesse aspecto, à budista, que é estar todo o tempo vigilante, e mais, como se Jesus fosse voltar a qualquer momento, com a lembrança do Cristo também como habitando seu corpo, dentro, e como modelo de comportamento, externamente, e ainda, aliado a isso, em oração todo o tempo.

No Egito e na Grécia antigos a meditação derivada da escola hermética era refletir longa e concentradamente sobre um assunto considerado superior. Hermes relata isso logo no inicio de seu Corpus Hermeticum, como estava compenetrado, refletindo acerca dos mistérios da existência, de Deus e dos seres, e sua mente foi como que arrebatada, e nisso se baseia a meditação hermética. Em yoga, que, apesar de ainda não sistematizada na época, influenciou muito a vida e a forma de meditar do Buda, a atenção se dirige ao corpo, à respiração, e então só depois no mais profundo, como o budista entra logo no início, [atenção] na mente e na consciência, seu funcionamento, etc.. Semelhantemente no taoismo, a contemplação passiva dos fenômenos, da natureza, semelhantemente  entre os indígenas aqui da Norte América, semelhantemente a outras culturas que podem ser chamadas xamanísticas...

O problema é que as pessoas não conhecem muito a história do oriente e lançam tudo isso muito para trás no tempo, mas todas essas coisas praticamente pertencem ao mesmo milênio surgindo em lugares diferentes, mas mais tarde com a expansão do comércio e das conquistas se encontrando no mundo palestino, também ao norte da Índia e no mundo helenista onde se popularizam em comparação com o que eram antes. Como Patanjali sistematizando yoga mais ou menos no ano 150 a.C.; o conhecimento hermético entre a elite grega em Alexandria; o budismo também provavelmente encontrou os essênios e com certeza mais tarde os cristãos e depois os gnósticos. Haviam monges itinerantes budistas no mundo helenista da época em que Jesus estava andando por ali e provavelmente eles constataram semelhanças e diferenças entre os procedimentos tanto que surgem três vertentes bem diferentes mais ou menos a partir daí. Surge a do budismo tântrico que dizem ter sido influenciado por hinduísmo, certamente por yoga, politeísmo, panteísmo; também surgem o budismo que enfatiza o caminho do bodhisatva, talvez até influenciado pelo cristianismo; e uma corrente que se aproximava mais do estilo de vida mais simples do budismo inicial influenciado muito especialmente pelo taoismo, mas também provavelmente pelo mundo helênico como se pode ver na arte na China da época que tinha sua relações comerciais e no uso de termos e conceitos mais ocidentais pelos eruditos budistas.

Mas no budha-dharma, no ensinamento de Buda, há um procedimento indispensável, por isso ele sistematizou esse procedimento e criou um trinamento intensivo, durante parte do dia para o desenvolvimento desse treinamento, que tem dois momentos, o treinamento em si e a vivência do que foi treinado no dia a dia, isso é toda a budha-terapia em sua abordagem que primeiro quero falar, esse treinamento. Vamos a ele.

O TREINAMENTO FORMAL

Aqui está uma frase do Buda encontrada no Digha Nikaya, vamos ler juntos: “Impermanentes são as coisas condicionadas, sujeitas à origem e cessação. Tendo surgido, elas são destruídas, a sua cessação é a verdadeira bem-aventurança.” [(usei a tradução mais conhecida encontrada em www.acessoaoinsight.net para maior exatidão)] Não há dúvida no budismo sobre isso, sobre esse assunto. Mas vamos prestar atenção ao que diz.

Nos devemos obedecer aos preceitos e treinar ninguém transcende isso. Um desperto não ultrapassa isso, porque quando ele está livre ele não consegue mais não cumprir os preceitos, parece uma contradição, mas é isto, quando ele está livre, desperto ele não transcende os preceitos nem o treinamento, pois ele naturalmente os cumpre e já está treinado.

Por outro lado vamos prestar atenção ao que diz: "Impermanentes são as coisas condicionadas, sujeitas à origem e cessação."  Ele não está falando de cultivo, de treino, todas as coisas condicionadas, treinadas, cultivadas são condicionadas, são surgidas e devem desaparecer porque "tendo surgido, elas são destruídas, a sua cessação é a verdadeira bem-aventurança." Veja bem, elas, todas, vão desaparecer, e mais, seu desaparecimento é a verdadeira bem aventurança. Isto é o princípio do paradoxo aplicado à iluminação, mas isso é outro assunto, pois aqui temos que ver quem está treinando e quem será liberto, o condicionado está treinando, o eu [(ego)] está treinando e obedecendo para que o verdadeiro eu seja liberto, o incondicionado seja liberto. O que vai despertar? O que vai ser libertado? Aquilo que nunca esteve preso, aquilo que nunca foi apagado, nunca dormiu, nunca sonhou. O que é isso? O incondicionado, o não alterado, o não mutável, o permanente, nas palavras de Buda, O Eterno. O que está aí dentro de você, mas você não tem acesso, permanece como que morto, não é a consciência biológica, não é a consciência animal, independe disso, é a consciência pura, que não surge na dependência de matéria e mente nos doze elos, é o que o zen chama de verdeiro eu, que os cristãos chamaram de Cristo dentro [(ou Cristo interno nas traduções latinas e tradições místicas)], que os hermetistas chamaram de nous [(ou "seu próprio nous" com letra minúscula)], e assim por diante.

Eu tenho que falar assim porque Buda o chamou simplesmente de incondicionado. E não diferenciou o incondicionado de Nirvana, nem de Dharmakaya, a não ser em pouquíssimos sutras, como os Tathagatagarbha-sutras, e isto ficou muito difícil para os ocidentais e para os japoneses também, por isso fazemos comparações e as tradições tântricas do Japão também deram diferentes nomes, para entendermos o que Buda está chamando de desperto, de buda, de liberto, de tathagata. Thathagata é o que assim veio e assim retornou, que nunca se alterou, que permanece idêntico ao que sempre foi, puro, incontamindo como é descrito em alguns suttas, vazio de todas as impurezas, de toda dependência (pois incondicionado), de sofrimento, de toda e qualquer mudança, variação, impermanência. A destruição do que é condicionado, ou seja, visões errôneas da realidade que criam o mundo de ilusão, é a verdeira bem-aventurança, visões errôneas, sentimentos errôneos, desejos errôneos...

Que adianta eu dizer isso amigos, algo tão filosófico? Para que vocês não caiam no erro de quase todos os budistas do oriente, de estarem cultivando a atenção vigilante [(mindfulness)] no eu ou do eu ou do eu biológico. Não é essa consciência que precisa ser percebida, é a consciência sutil, aquela que está sempre presente, por trás de todas as outras e de todos os estados, mesmo no sonho sem sonhos (ou escuridão sem memórias ou nada). Vocês estão identificados com a mente ou com o corpo, com a consciência biológica, não vai adiantar reforçar isto, vai piorar, vocês tem que acordar para a consciência verdadeira que independe do corpo e da mente, é para isso todo o método e todo o discurso de Buda, não para outra coisa. O que vocês me dizem?

Platéia: Me parece complicado para nós ocidentais entendermos as definições que não são definições do Buda, as definições negativas, que vão descrever as coisas pelo que elas não são, tais como não-eu e Nirvana, ou se isso é um estado ou algo. É que me parece muito difícil, eu mesmo tenho receio, temo praticar algo que não tenho definido qual o resultado a longo prazo ou a curto prazo. O que devemos procurar? Qual é o objetivo? Eu vejo que isso não é definido na meditação quando se ensina.

Resposta: Geralmente no começo não, a pessoa tem que ir vendo por si mesma. Eu considero uma didática não boa. Depois que você está treinado e tranquilizar a mente e atingir alguma concentração deve dirigir sua mente ou para os graus dhyana ou para percepções específicas do ensinamento como as três marcas da existência, os doze elos da originação interdependente, etc.. O problema é que só ensinam isso para monges ou no máximo em alguns casos para pessoas muito experientes. Também discordo dessa didática. Logo no começo a pessoa tem que saber o que fazer e para onde vai com sua mente e consciência. Se não fica perdido, afinal tudo que conhecemos se encontra na consciência, ainda que não esteja aparecendo no momento...

P. Mesmo assim eu acho difícil, em comparação com outros sistemas, que a pessoa se anime para praticar algo que o levará a uma espécie de anulação de si mesma.

R. Não precisa ser assim. Isso pode acontecer numa escola mal dirigida, mal orientada, ou numa escola que é uma distorção (como existem de fato). O uso da concentração como falei tem objetivos, de conhecimentos e compreensões específicas, e você pode usar também como ferramenta para seus objetivos pessoais e desobstruções pessoais, porque o processo da meditação antes de tudo é de remoção de obstáculos. Isto que está falando pode ser uma questão da linguagem. Veja...

A escola dhyana, o chan, o zen talvez tenham sido as primeiras a investir na solução do problema da limitação da linguagem em expressar as realizações espirituais. Por um lado através de paradoxos, questões complicadas e aparentemente insolúveis como os koans, gestos, ações, ações simbólicas, por outro lado através de um densa produção intelectual e filosófica que procurava explicar justamente o inexplicável em muitos de seus pontos. É nessa literatura que vai tratar os mesmo fenômenos com novos termos sem se preocupar muito com os tradicionais, mas buscando termos que expressem mais o tipo de realização que eles se propunham e muitos haviam realizado.

Então temos a experiência do "verdadeiro eu" em vez de a "experiência do vazio de um eu"; o "auto-conhecimento" ou "conhecimento de si mesmo" em vez do conhecimento "das coisas como realmente são"; "esquecer de si" em vez de mindfulness simplesmente ou de "consciente da consciência" ou do "lembrar-se de si" de outros; consciência-apenas ou mente-única (uns dizem) e até Deus no lugar de Nirvana ou incondicionado, muitas vezes. Se vocês observarem bem, isso parece até uma heresia, trocando as definições negativas antigas (o que a escola [zen] da não-mente vai tentar resgatar depois), por conceitos positivos. Mas na verdade observe que todos os primeiros conceitos não tem referencial na experiência nem no mundo tal qual conhecemos, não existe como ter uma ideia deles, essa mudança de termos vai dar uma ideia a pessoa daquele que buscamos. Isto é apenas uma ferramenta, pois, como alguém vai dedicar a vida a uma libertação a qual sequer pode conhecer as características? Ou como você disse bem, como alguém vai se dedicar a algo que parece ser descrito como uma aniquilação de si mesmo?

Para os ocidentais isso fica fácil de entender se compararmos às palavras de Cristo, quer ver?

"Negue-se a si mesmo", parafraseando, "Quem perder sua vida por amor a mim vai ganhá-la, mas quem agarrá-la vai perdê-la". É quase o mesmo. Entendeu agora como num passe de mágica?

P. Sim. Verdade.

R. Essas escolas são na verdade primeiro uma nova linguagem, não uma nova escola, uma nova filosofia. Mas eles procuram dar o entendimento da mesma coisa. Veja, não tem como você ter uma ideia das "coisas como realmente são" se você nunca viu as coisas como realmente são e só conhece as impressões, aparências, ilusões, tem que haver um referencial ao menos na linguagem. O que é atenção plena [mindfulness]? Pergunte a si mesmo se já teve essa experiência. Como é o não-eu [non-self]? Não é, você não vai encontrá-lo, não vai encontrar um "não-eu". Como é Nirvana?Como vou saber como é isso para que eu possa querer isso? Acontece que aquele encontro de culturas que falei proporcionou isso, ver no outro, o que é seu próprio, imaginar que é o mesmo, mas com outra explicação, sob outra perspectiva, ou pelo menos algo similar e usar então uma ferramenta muito utilizada pelo Buda, comunicar o incomunicável através de símiles, e agora temos novos símiles. Isto pôde também resultar em novos conhecimentos e até inovações técnicas. Uma nova forma de compreender também proporcionou outras novas compreensões, algumas se incorporaram à tradição, outras geraram novas tradições, outras transcenderam a tradição entrando nos campos da filosofia, psicologia; outras apenas foram vistas e comentadas nessas tradições e meios budistas e não-budistas.

P. Eu não vejo essa prática como você falou nos cristãos, nem vejo que eles tenham esse entendimento, eu não vejo relação com o budismo.

R. Eu falei de cristãos, não de denominações que se dizem cristãs, não de pessoas que se dizem cristãos, não de instituições. Todo cristão deve estudar a bíblia, e tudo isso que falei é bem claro lá, todos que estudam a bíblia sabem disso, devem ter um comportamento, que obedeça os mandamentos incluindo os de Jesus, que não escandalize a outros, deve ser sempre vigilante, meditar e orar constantemente, etc., tudo que falei e mais muitas coisas. Os que não praticam ou nem sequer sabem disso podem ser chamados cristãos? Não. Mas eles se dizem cristãos. O mesmo ocorre no budismo. Não pense que é diferente, são pessoas. Você sabe como é no oriente? Lá muitos se dizem budistas mas não sabem o que é dana, sila e bhavana, não estudam os ensinamentos, não meditam, não cumprem os preceitos nem se dedicam a alcançar os paramitas, e existem escolas e instituições assim como existem no cristianismo que não ensinam a essência do ensinamento, como há no cristianismo instituições que não ensianam os fundamentos, essas não ensinam os fundamentos budistas, mas coisas muito diferentes como rituais e mantras. Existem pessoas que simplesmente assistem a cultos e nada praticam, outros que simplesmente se dizem budistas por ter nascido numa família budista. Eu diria até que são uma maioria, que se enquadra em alguma dessas características ou em todas elas. Essas pessoas que agem assim e essas instituições podem ser chamados budistas? Não.

O problema aqui é que todos acreditam que nasceram numa cultura cristã e que sabem o que é o cristianismo, mas não sabem. A mesma coisa os críticos acadêmicos não conhecem o que criticam, não estudam o que criticam, como podem criticar? Ou só podem criticar e atribuir histórias e características que não existem. A mesma coisa os que vêem o budismo como uma forma de adoração a Buda e que Buda é como um Deus, isto está correto? E se eu disser que existem pessoas que se dizem budistas que pensam assim? Então vocês vão culpar essas pessoas ignorantes da visão errada das outras pessoas, certo? Exatamente as mesma coisas acontecem, em todo lugar, porque somos humanos, imersos em maya, ilusão, malícia e ignorância. O conhecimento proporcionado pelo simples estudo já evitaria boa parte desses enganos.

Além dessa relação (negativa aqui), está claro que a prática comum de todos os exemplos que dei é dirigir a atenção para um foco, todos estão praticando uma concentração em algo, é este o ponto. A prática é a mesma embora mude [a] o objeto de meditação ou [b] a interpretação do que ele é ou [c] o método pelo qual se dirige a atenção ou [d] a interpretação das experiências obtidas. Você levou em consideração todas essas variáveis? Geralmente as pessoas não as considera, simplesmente vão lá e pensam sob apenas uma delas, uma única ótica. Se não tem consciência do similar também terá pouca ou nenhuma consciência das variáveis e vice-versa (coisa de pesquisador). Além disso todos os sistemas que falei tem uma norma moral, semelhante inclusive, uma dieta mental, e todos propõem temas e leis sublimes eternas. Eu não posso exigir que percebam como um cientista da religião ou um psicólogo ou antropólogo, por isso mesmo estou mostrando isso, de forma bem simples e resumida, digerida, pois apesar de não haver necessidade de se aprofundar nisso, é necessário que reconheçamos os pontos que devemos ver de agora em diante, que não é mais o mesmo foco superficial de antes. Todas essas religiões, sistemas, filosofias e culturas que falei tem sua própria dana-sila-bhavana, não? Precisamos compreender o outro, do ponto de vista do outro, se estiverem errados não vamos conquistá-los com críticas, mas com nossa visão, podemos apresentar um aspecto que não estão vendo se pudermos perceber. A grande ligação é essa. Há uma falha, um limite humano de perceber, em qualquer pessoa, em todas, um que vê uma coisa não vê outra e assim por diante. Religião podemos discutir, debater, apresentar e nisso passamos a ver mais do outro. Espero que tenha visto agora...

Todos esses que falei propõem uma certa unificação final ou retorno a um estado original, uma mudança, e que isso clareará sua visão no futuro. Nenhum esforço nesse sentido merece nosso desprezo, todos tem algo a nos informar e nós também temos algo a informar. Se isto surtirá efeito, se será praticável e se será levado à prática é outro assunto. Em todas essas culturas existem pessoas em vários níveis de compreensão dessa mesma cultura. Não estou me colocando como um budista nem como um cristão nem como um psicólogo nem como um pesquisador, mas como justamente alguém como qualquer outro que debate sobre qualquer coisa que conhece e que viu. As pessoas desenvolveram uma reação contra o religioso que tenta convencer outros de sua religião e não vêem que essa defesa passa por justamente criar falsas idéias sobre aquilo que aquela pessoa vai apresentar e ignorar o que ela vai apresentar. Depois vamos por aí criticando o que ignoramos, o que decidimos ignorar. Não é dizer que devemos considerar todas como válidas ou similares, mas estamos falando agora de pessoas, sua colocação foi sobre as pessoas e devemos tratá-las com a mesma amabilidade como se nós mesmos estivéssemos ali naquela situação.

[Havia mais uma pergunta dessa mesma segunda pessoa e a resposta, mas o texto foi perdido.]

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