Por Ryokan Hiroshi
Olá, amigos, estudantes, interessados, sejam bem vindos. Vocês estão aqui para mais uma vez, ou primeira vez, ter uma introdução sobre nossos assuntos, nossa prática, nosso significado. E já, como sempre, todo o básico já, para ir desenvolvendo. O que ensinamos?
Primeiro vou dizer o que é que dizemos, para dizer o fazemos e porque fazemos e então o que ensinamos. É uma perspectiva bem melhor assim, porque não é dogmática, é prática. Estou aqui para apresentar a perspectiva da psicologia do Buda, sua abordagem ou suas abordagens, melhor dizendo. E antes de apresentar o que diz a psicologia de Buda é preciso saber o que diz Buda e o que diz a tradição e porque...
O que dizemos?
Dizemos que todos os seres estão aqui sujeitos ao sofrimento e ao prazer, assim como estão também ignorantes de muitas coisas. Entre elas o principal, o que sou eu? Como é que eu funciono? Onde estou? Para onde vou?
Estas questões não são só minhas. Mas dizem há também outras. Outras perguntas para nós não tem importância primária, mas vou dizê-las porque vocês aqui sempre dizem, "de onde eu vim?", "quem eu sou". Uma pergunta sem muito propósito e outra errada. Para que você quer saber de onde veio? De que serve essa informação? Ou, o que você vai fazer com ela? Primeiro você precisa saber porque está perguntando isso. Saber sua origem pode ajudar a descobrir O QUE é você... Não tão mal! Agora essa pergunta ganhou um propósito.
Mas quem é você? Essa [é uma] pergunta errada. Atrapalha tudo. "Quem" é uma coisa que muda, no tempo, de ponto de vista, mas pior é: "quem" é o que? O que você quer dizer com quem? Uma pessoa? A personalidade? Sua mente? A consciência? Uma certa parte de uma delas? Todo o conjunto do seu ser? O eu?...
Então uma coisa que Buda perguntaria é "que eu?". E Buda diz que não há "eu"...
Me mostre o "eu" primeiro e então eu digo quem você não é!
(Você não vai conseguir me mostrar eu algum. Eu gosto do zen, eu uso o zen porque é a melhor linguagem para mim, por muitos anos eu fui zen. Todo mundo nota...) Eu vou lhe fazer uma pergunta: o que nós dizemos para você?
[Silêncio e olhares, ele olha para cada um em particular]
Nós dizemos que você não tem manual de instruções sobre você, nem sobre esse mundo, nem sobre a vida... Nós dizemos que você não sabe o que é você e nem como você funciona. Nós dizemos que você não sabe para onde vai. Este é o que queremos dizer, esse é nosso significado, de estar aqui, para transmitir... E nós dizemos que isso não está certo, não é correto. Vamos estudar essa "deficiência psicológica"?
Então trazemos esse ensinamento que é chamado dharma. Dharma (ensinamento) é medicina para esse estado de existir e de saber. Só isso. Muitos dizem "ah, budismo, uma religião...". Budismo não é uma religião. É uma palavra inventada, no ocidente, para "ensinamento de Buda" [(Budha dharma)]. E "Buda" que é isso? É uma palavra para dizer "aquele que despertou". É o que levou o carimbo: "curado".
[Ele explica isso escrevendo as palavras e os conceitos na lousa]
Curado de que? Da cegueira (ignorância dessas coisas), da cobiça e da aversão; e do efeito disso; foi aquele que se curou do sofrimento... dizem... Canonicamente falando isso é apenas uma dedução, pois quando ele saiu sem despertar ainda foi à procura disso. Perdoem minha abordagem, mas não é bem assim, essas palavras não são bem traduzidas, adequadas, esqueçam tudo o que ouviram baseado nelas.
Nesse aspecto é mais que o "ser uma religião" porque é uma metodologia detalhada para resolver um certo problema, bem específico. O fato é que o que dizemos é que é uma abordagem, o ensinamento é uma terapia, para esse tipo de cura. Tudo que foi resumido numa palavra, dukka, insatisfação, insatisfatoriedade, que gostam de dizer "sofrimento". Essa foi a busca de Sidharta, antes de se tornar o Buda, resolver esse problema, mas ele encontrou outras coisas também no caminho.
Curar dukkha... Dukkha é nascimento, dor, adoecer, separar-se do que se ama, estar ligado ao que se tem aversão, é decadência, envelhecimento, morte... Assim ele definiu, vejam, não sou eu que estou dizendo. E a causa disso tudo é a ignorância. Seria muito dificil mostrar descrever as cores para cegos de nascença, ou ensinar as notas [musicais] para os surdos de nascimento, então Buda criou uma abordagem especial.
Mas o dharma também não é uma filosofia, e há um problema e algo a ser feito. É também um "o que fazer com isso agora".
Então o primeiro ponto é que dizemos que temos essa herança, essa tradição, desse tipo de medicina para as dores da alma, vamos dizer em linguagem do ocidente, sofrimento, insatisfatoriedade. Mas não é sobre isso só que é o dharma, é sobre paz, comportamento, pureza, conhecimento, relações... São muitas coisas a serem feitas e ou alcançadas. É bem pragmático se gostarem da palavra (eu não gosto, mas não encontro outra).
Então, primeiro ponto, bem aberto, bem amplo, há o budha dharma, o ensinamento de Buda.
Que primeiro é uma medicina. Terapia. Ele nasce assim.
Podemos dizer que na prática é um método, e um modo de viver.
Então isso gera uma filosofia, uma filosofia de vida. E um "modo de ver".
Enfim temos as tradições.
Que depois, se pode dizer, "foi tomada", como religião. Mas são as escolas de pensamento e método, são as escolas diferentes de filosofia. Muito mais certo dizermos que a tradição se dividiu em diversas escolas. Então em um último estágio nós temos essa visão de escolas em diferentes tradições (depois posso dar exemplo). E nelas entram definições próprias também tanto adotadas de concílios gerais quanto de seus próprios concílios...
Ok, o que dizemos... Nós estamos com uma visão embassada.
Então nós dizemos que estamos doentes, e que essa doença tem uma causa, e que, é difícil, mas se eliminarmos essa causa ela desaparece. Mas existe uma terapia que leva à cura!
Ei, eu sei que todos aqui já conhecem as quatro nobres verdades, que parafrasiei agora, não vou ter que repetir. Mas para os novos... Vamos?
Há...
Dukkha
Mas dukkha tem uma causa...
Ignorância-cobiça-aversão é a causa
Mas existe a cessação de dukkha
A cessação da ignorância-cobiça-aversão
E existe um caminho para a cessação de dukkha
O nobre caminho octuplo
E isso é o fazemos, percorremos esse caminho óctuplo. Nós fazemos o caminho óctuplo para nos libertarmos da ignorância-cobiça-aversão e sua s consequências. Conscientes disso até aqui...
O que fazemos
Ok, budismo não é religião, religião é religação, retorno, budismo, que também não existe, qual é nome certo? Isso, dharma do Buddha. Porque não se liga a nenhum deus, nem ser, nem retorna a nenhum lugar, não se religa.
Só que se pensarmos que esse procedimento nos leva a nossa verdadeira natureza pura antes da queda, antes da ignorância; então se ela é a verdadeira nós já tínhamos! Estão religa. A questão é antes existia um nós? E se existia esse estava ligado à natureza original? Buda diz que não, não havia esse nós, esse eu separado, ele é uma ilusão. Mas vamos com calma, chegaremos já nesse ponto. Porque aqui chegamos num nó desse dhamma [(palavra pali para o sânscrito "dharma")]. E dharma não é uma filosofia, isso foi um método usado por Buda para a pessoa largar o falso e poder encontrar o verdadeiro.
O dharma é tratamento psicólogico. Uma terapia. Uma medicina. Hoje nós poderíamos bem colocar ali no meio da "medicina oriental". "Ah, uma é medicina chinesa, hum, uma é tai-chi, outra é yoga, outra é ayuvédica, ah, tem outra, dharma do Buda". Buda se disse médico. Por que?
Porque estamos doentes, a cegueira e a doença, ignorância das perguntas que eu fiz é a doenca: que sou, como funciono, onde estou, para onde vou? Só que essa cegueira ou ignorância no dharma não é pela ausência de um saber, mas pela presença de um obstáculo que impede de ver. É como uma névoa que nos turva e nos esconde a realidade.
A causa é um vírus, uma estrutura alienígena à nossa natureza original e essa estrutura é composta de dois opostos: cobiça, desejo, apego, ganância de um lado, e do outro lado ódio, aversão, ressentimento, rancor.
[Indo à lousa para escrever algo] (Vocês estão notando que eu gosto do número quatro não é? Por isso vou colocar ele em dobro agora...)
Mas existe cura para isso. E Buda ensinou um jeito! Se chama "nobre caminho óctuplo". É o que fazemos sobre isso.
[Desenhou uma roda do dharma e escreveu em ordem:]
- Compreensão Correta(Samyag-drsti);
- Pensamento Correto(Samyak-samkalpa);
- Fala Correta (Samyag-vac);
- Ação Correta (Samyak-karmanta);
- Meio de Vida Correto (Samyag-ajiva);
- Esforço Correto (Samyak-vyayama);
- Atenção Correta (Samyak-smrti);
- Concentração Correta(Samyak-samadhi).
Isto é o que ensinamos, a realizar esse caminho, basicamente é isso. Porque é isso que fazemos. Pessoas aqui de todas as culturas, de todas as etinias, de todas as religiões ou sem religião, não importa. Essa [é a] terapia para tratar esse problema humano.
O que ensinamos?
Então ensinamos isso. Vamos ver passo a passo cada ensinamento desse caminho óctuplo. Mas não é só isso, temos outro lado do ensinamento, que veremos após esse, como os paramitas, por exemplo. Vamos comecar pelo primeiro, "reta compreensao". Outra forma melhor de dizer o primeiro é "visão correta" ou "consciência correta". O primeiro é o ponto de partida. Como ensinamos a ver corretamente nessa tradição?
Você precisa ver as coisas como elas são para que seu "apego-aversão" diminua. Apego não é simplesmente gostar, querer, é "apego sedento" que estamos falando, que dá uma falsa sensação de posse, ou que busca possuir, e de identidade-identificação com a coisa possuída, aparentemente possuída ou desejada. Chama-se "desejo-apego". "Aversão" é mais fácil de ser entendido, pois é o que é, aversão, repulsa, ódio, intolerância...
Primeiro ensinamento prático
Como é que praticamos a consciência correta? Primeiramente é percebendo que toda coisa e fenômeno nessa natureza tem três características: tudo é impermanente, insubstancial e consequentemente insatisfatório. Insubstancial é não ter existência nem realidade em si mesmo nem por si mesmo, ser definido por conjuntos, agregados, de condições, causas e relações, dependente, portanto não-eterno e não-eu, ou seja disprovido de um ser real em si, condicionado. E nós e todos os que amamos estamos incluídos nessas três características, portanto não temos um eu próprio, em si mesmo, mas agregados mentais condicionados fruto das mesmas causas, condições e relações, portanto impermanente, portanto insatisfatório.
Sim, nós não somos um eu, segundo Buda, nós temos um eu impermanente, insubstancial, insatisfatório, nem sempre presente, chamado eu convencional... No zen falamos que o objetivo é conhecer o verdadeiro eu. E uns perguntam se o verdadeiro eu é o não eu. Que pergunta mais zen! Mas não. O verdadeiro eu é o que é eterno em nós, é isso que precisamos encontrar e conhecer nessa etapa, chamado em todo mahayana (inclusive no nosso bodhisatvayana) de "nossa verdadeira natureza" ou natureza verdadeira da mente ou da consciência, ou também chamada de consciência-apenas na escola zen (apesar que existe outra visão de outra escola aí, que diz que não há eu algum nem mente alguma nem consciência, mas está errada, e Buda nunca ensinou isso, é invenção; e outra diz que anatta ou anatma é não-alma em vez de não eu, todos sabemos que Buda nunca disse que não tínhamos alma, mente, de jeito nenhum [a palavra alma vem do latim anima que é a tradução do termo grego psique, mente, Buda nunca falou que não tínhamos mente]). Essas são as três características da existência, se você observar vai vê-las em tudo e em todos.
Pronto, primeira lição. Vejam isso...
Isso é o que ensinamos a entender e a fazer.
Para esta manhã é isso que temos, mais tarde continuamos, com a segunda lição.
Mas por agora eu preciso de suas perguntas...
As coisas mais importantes eu falo nas respostas às perguntas geralmente...
Perguntas
P. O senhor falou que budismo não é uma religião então porque alguns se dizem da religião budista e como é que eu faço para me tornar um budista sem ser da religião budista?
R. Boa pergunta. Duas perguntas, na verdade. Respondendo a primeira. Por que uns se dizem da religião budista? Porque ainda não despertam...
Quando você despertar deixará de ser budista, zen, ou qualquer coisa referida a isso, isto é uma ferramenta, como uma chave de mecânico. Depois que você faz o reparo que precisa com ela você sai por aí dizendo "agora eu sou um chaveiro", ou "agora eu sou mecânico"? Espero que não.
Eles aprenderam assim. Eu ensino de outro jeito logo no começo porque eu fui budista de várias escolas, terra pura, a da minha familia, tientai, soto, rinzai, tendai, theravada, shin, sanbo kyodan... Outras passei por elas também, mas como a primeira sem muito aprofundamento, e só pude me aprofundar no shin [terra pura] quando me aprofundei no bodhisatvayana, quando estava fora dela, quando você se identifica com algo isso gera obstáculo, apego, atrapalha, você cria um novo "eu budista", um novo muro em sua prisão.
Então não é preciso se tornar budista de modo algum, isso pode até atrapalhar. Você pode fazer melhor se tornando um praticante, isto é, praticante do ensinamento. É assim que falamos. Isto é o que deve fazer tanto o que quer ser "budista" quanto o que não quer ser "budista", quer apenas usufruir do treinamento...
A palavra religião nem existia no budismo por séculos. E até hoje, apesar de menos, você verá, pessoas de outras religiões na China, Coréia, Japão, Tailândia sendo assíduos praticantes do budismo, especialmente no sanbo zen você tem até monges, padres, sacerdotes de outros sistemas...
Se a pessoa segue uma religião é melhor que continue, descobrirá muito mais coisas sobre si mesma se não tomar a prática como uma religiosidade. A religiosidade é apenas um desencargo de consciência, para as pessoas que só seguem a si mesmas, que não se adaptam a verdades, regras, disciplinas que não sejam as suas próprias, que não querem ir nem um pouco além de suas margens de conforto, nem tem compromisso com a verdade, só unicamente com o prazer. Religião é algo bem mais sério. Não algo para ficar quicando de uma para outra ou para tomar apenas parcialmente. Nós aqui na ordem não brincamos com a religião dos outros.
Por isso a sua segunda pergunda é muito importante. A maioria das escolas exigem que se tenha um professor ou mesmo uma iniciação para se tornar praticante. Mas isso parece brincadeira. Quer dizer que não posso praticar isso se me fizer bem? Eu não penso assim. Buda disse que um bhikshu ou um brahmane é todo o que ouve o ensinamento e pratica, não disse que é todo que tem um professor ou iniciação.
E existem os sutras. Existem iniciações e permissões especiais para os mais avançados, mas para ser um praticante o principal é seguir os cinco preceitos, não quatro, não três, cinco. É o começo de tudo. Gostam de chamar aqui de treinamentos, isso é uma confusão, são preceitos, não treinamentos. Ouvir o dharma e aplicar o ensinamento, e para se considerar um praticante a condição é tomar os cinco preceitos, a diciplina moral. Sem isso não adianta nada, esqueça.
São três coisas que você precisa fazer. A primeira é essa. Tem que tomar os preceitos, adotá-los como lei. A outra é o tríplice treinamento:
1. Sila, virtude;
2. Samadhi, concentração e
3. Panna, ou prajna, sabedoria
Agora sim, treinamentos. Esses são os treinamentos.
E tem que seguir os três fundamentos (sila, virtude; dana, generosidade e bhavana desenvolvimento da mente). Fundamentos, ou seja, sem isso deixa de ser o dharma.
Observe que é um método que tem a purificação da mente como ferramenta, mas também como objetivo e resultado. "Fazer o bem, evitar o mal e purificar a mente, estes são os ensinamentos de todos os budas". Você tem essa sentença também na Bíblia duas vezes, uma na Antiga Aliança e outra na Nova Aliança. E agora? Se os médicos passam para você um remédio que tem três substâncias ativas porque só as três juntas curam, você vai na farmácia e compra um que tenha apenas uma das substâncias ou duas porque o remédio é caro ou alguma substância é amarga e o que acontece? Você vai morrer! Não adianta.
[Risos]
Quem me procurar querendo aprender a meditar eu vou ver primeiro se a pessoa quer purificar a mente, se ela quer ser boa, amorosa. Se não, eu a enxoto. Meditar não serve para nada. O remédio só faz efeito com os preceitos, fundamentos e treinamentos, e estes você ainda vai ter que aprofundar depois em sua recuperação, com mais treinos, os paramitas e o voto do bodhisatva são o ápice da virtude, complementam o treinamento.
Os preceitos e treinamentos sozinhos fariam ainda bem melhor efeito que a concentração sozinha. Seria melhor que ele me procurasse para que eu ensinasse a ser uma pessoa boa, inofensiva ou generosa ou que me pedisse para tomar só os preceitos. Eu fico muito triste se numa turma algum confessa que está só interessado em "aprender a meditar". Tais pessoas são más, egoístas, e não sabem disso, se sentem zen, trancendentais, e não querem nem ouvir o outro, não há interesse pelo outro, são materialistas, querem se sentir bem, só isso.
Quase todas as escolas falam sobre tomada de refúgio como prerrogativa, mas algumas poucas escolas não, outras ainda pelo menos não fazem disso uma exigência. Isso é uma tradição que surgiu depois de alguns concílios, especialmente os ecumênicos, como exigência para os monges. Era uma tradição da Índia antiga, se chama tomar refúgio no mestre, no professor, aquele passa a ser o cuidador, o defensor, tudo, como um pai para um filho, o pai entregava o filho àquele, que seria um pai para ele e os outros como sua família. Os samanas podiam ser individualmente um refúgio para seus discípulos, pois esses abandonavam as velhas crenças, os sacrifícios em troca da proteção dos devas, os deuses da Índia, nesse caso haveria um líder e responsável pelos outros, que seria professor e eles o obedeceriam... No budismo passou a haver as três jóias como refúgio. Foi um remédio. Mas o verdadeiro refúgio era apenas na verdade (também chamada dharma). Se você obriga a pessoa a tomar refúgio no Buda, novamente temos uma religiosidade, a pessoa mal conhece o que Buda ensinou e já o toma como um deus da verdade e um protetor pessoal. Nós não devemos fazer tais exigências de uma fé cega.
P. No budismo mahayana ainda existe o refúgio no guru sempre?
R. Muitas escolas mahayanas continuaram com esse costume, mas também adicionaram ao refúgio nas três joias ainda o refúgio no guru e nos três reais refúgios, ou joias internas, a natureza búdica interior, a verdade transcendente, e aos iluminados do passado. Angumas escolas do vajrayana extendem isso ainda a outros níveis de refúgio ou de entendimento. Eu prefiro encarar como níveis de penetração no entendimento de um refúgio real do que como três tipos de triplo refúgio literais.
Isso tudo foi para satisfazer o culto a ancestrais que havia em algumas regiões, ou às divindades que passaram a ser vistas agora como budas ou emanações do Buda Eterno em outra. Eu não recomendo essa prática e nós não exigimos nenhum tipo de refúgio. Buda disse [que] seja cada um refúgio para si mesmo. Parece duro, mas existem alguns aspectos bem duros no ensinamento. Buda disse, quando eu me for vocês têm o dharma... Ele não disse que ia nos guiar de um outro mundo. Nem disse que ia nos ajudar. O religioso budista tem seu refúgio no dharma. Isso não é uma regra nova, nem geral. Como recebi transmito. Se colocar isso como condição o dharma se fecha. Como o dharma é uma yoga não pode ser exclusivista, pois é uma ciência antiga. O dharma do taoísmo e do budismo e da yoga são dharmas "não-exclusivistas". Existem outros dharmas exclusivistas, não é problema, faz parte de sua condição, aqui não há essa condição, mas a condição de tomar os preceitos existe. Você não pode de jeito nenhum se dizer um praticante e sair se embriagando, mentindo, roubando. Não!
Existem ainda como eu disse o ensinamento das 6 perfeicoes para os iniciantes e 10 (12 ou 14, depende). Usamos 14 porque existem sutras em que não coincidem os dez resultando em acréscimos, mas podem também ser incluídos como aspectos dos 10.
E por última condição você precisa assimir o compromisso consigo mesmo de praticar as três únicas práticas que tornam você um praticante: a diciplina que inclui os preceitos e a prática moral, o ser generoso, dar sempre, se colocar sempre em último lugar, servir (especialmente no bodhisatvayana) e por último a concentração, que chamam de meditação, mas inclui consciência correta, atenção correta e concentração correta.
Recapitulando: preceitos, fundamentos e compromisso (esse compromisso pode ser com um professor, ou através de uma iniciação ou consigo mesmo em sinceridade). Daí você recebe os treinamentos e vai praticando, aprofundando e recebendo mais, e assim por diante.
Basicamente é isso todo o necessário para ser um praticante.
P. Mas não existe uma dimensão de fé, que pode ser entendida como religiosa?
R. Até podemos admitir alguns aspectos, como a fé, a confiança no professor. Mas você precisa dessa fé de qualquer modo para qualquer coisa. Se estuda medicina vai ter confiar, em alguma medida pelo menos, no professor, nos livros nos sinais que foi instruido a interpretar como sendo isso e aquilo. Se vai a uma cidade desconhecida você compra um mapa. Porque você confia no mapa? Pura fé. Você pode dizer "mas aí é diferente", você já estudou ciências sociais ou humanas? Para nós, é tudo baseado em fé. Aa! Não acredita? É porque você nao teve que estudar psicologia como eu!
Como eu disse antes o que define religião é a questão de religar-se a algo, geralmente um ser supremo, um estado anterior, um local. Não é se há fé ou não há fé. Muita coisa na vida é pura crença e não é religião. No budismo existem escolas até que falam de uma terra pura, mas não de um retorno, outras falam de um Buda Eterno, mas você não estava antes com ele. A questão do refúgio pode ser uma questão de fé, ou de religião, mas a origem desta prática, é totalmente diferente, o objetivo é outro.
Você pode ter a religião que quiser, isso aqui não interfere, isso interfere como um psicólogo, um psicanalista e um psiquiatra, trabalhando juntos, para você deixar de ser escravo de certos pesadelos que levarão sua vida a um colapso!
Fui bem exagerado agora, não? Não, eu penso assim mesmo. Não sei como se pode viver sem saber para onde vai, seja depois da morte ou daqui a alguns anos, nem em que tipo de pessoa vou me transformar, ou se vou estar em paz ou em conflitos e sofrimentos. Então eu não posso mais ser zen, não é verdade?
[RISOS]
P. Eu sou cristão e tenho um amigo da religião afro... Ele tem suas obrigações com orixás. De mim não posso ter outro refúgio que não seja Jesus Cristo, que não seja Deus triuno... Mas digamos que vou ser um praticante 100% do que é ensinado numa tradição por meu interesse na cultura se eu fosse dessa cultura, vamos supor, ou interesse no aspecto psicológico. Como conciliar? Isto seria possível? Porque parece possível da forma como o senhor apresenta.
R. Não tem problema. Você só vai precisar encontrar uma escola que aceite isso caso você queira oficialmente seguir tudo dentro da tradição. Mas não ha necessidade disso.
Em algumas tradições ou escolas sim, porque algumas você tem que receber uma iniciação, vão exigir isto, noutras você tem que prometer fidelidade e exclusividade, noutras a obrigação da tomada de refúgio. Essas escolos podem incluir tudo isso junto, são a maioria. Você teria que encontrar uma escola, como a sanbo zen por exemplo ou alguma do budismo primordial, ou algumas zen que não veja problema, por exemplo.
Mas o mais adequado nesse caso pode ser participar de uma ou duas escolas e estudar várias e se dedicar àquilo que você quer, se psicologia psicologia, se tradição tradição. Você pode ter problemas se a tradição for esotérica, pois provavelmente você não vai penetrar ou se deixarem você penetrar não vão mostrar tudo, sempre vão ver você como de outra tradição ou religião ou cultura ou mesmo como infiltrado, pode causar suspeita, de espião.
No geral, é porque aqui no ocidente o budismo é muito diferente do oriente, aqui se destaca muito a tradição, a oralidade, e se diz que lá é assim. Mas na maioria das escolas o mais valorizado são os sutras. Depois da partida do buda o mais referenciado é o dharma. Os sutras são a expressão mais completa do dharma, para a maioria das escolas. Em muitas deve ser lido o mesmo sutra em todas as reuniões, numas cantando as sílabas e muitas ate na língua original. A autoridade maior depois do Buda é o sutra. E você tem também em muitas o refúgio no guru ou professor que dificulta.
Mas apesar disso o mais importante nas tradições originalmente é seguir o ensino. E o ensino está nos sutras. Você pode ser um praticante solitário em qualquer lugar (existem até tradições de monges completamente solitários). Buda disse isso, essa é a herança e a autoridade. Está acima de professor e linhagens. Você pode se dedicar a qualquer coisa, o todo, ou partes, qualquer aspecto que queira aprender, ou ser um budista completo ou mesmo fundar uma sangha, só a partir dos sutras se você tem estudo suficiente ou se você quer formar uma justamente para estudarem juntos. Foi o próprio Buda que ensinou que seria dessa maneira. O que você não pode é se dizer um praticante e não praticar os preceitos e os fundamentos.
É claro que muitas tradições vão colocar outras coisas, como listas de linhagens que realmente não chegam ao Buda, ou mistérios ocultos nos textos. Eu fui de escola esotérica, sei disso. Mas ao contrário, os sutras são muito claros, muito bem explicados, não há dificuldade. A dificuldade só pode estar em sua mente se não entende. Então precisa buscar alguém ou uma escola.
O que podenacontecer é que em alguma religião possa haver fundamentos contraditórios aos fundamentos do dharma. Por exemplo se a religião tem como obrigações matar ou mandar matar, sacrifícios. O preceito do dharma de não matar de não matar se refere a todos os seres. Esse exemplo é bem claro. Mas podem haver outros fundamentos que não estejam tão claros, a pessoa deve ter uma boa orientação.
Mas se não há contradição siga com as obrigações de sua religião e evite o que vai contra ela, só isso basta para consciliar. Aqui nessa ordem muitos fazem isso, uns querem ir além da psicologia budista e penetrar mais na tradição e fazem isso ainda. Nao é empecilho ao resultado como muitos dizem. Isso é uma superstição. Que sem refúgio ou sem exclusividade não se chega aos resultados é falso. Quando ouvir isso de algum professor duvide. Quando você não pratica [é que] você não chega a resultados!
P. Eu sou de outra religião não poderia tomar refúgio porque isso seria contrário a ela. É bom saber isso. Mas se tiver práticas ou alguma coisa que fira minha religião posso expor isso e posso não praticar?
R. É só não praticar isso. Ninguém precisa saber. Mas se quiser expor ou discitir isso não tem problema. Você só não pode ser praticante e fazer coisas que vão contra os princípios que já falei. Por exemplo, você não pode matar amimais, nem ser um açougueiro ou ladrão ou lobista. Não deixe sua religião a não ser que veja que ela é prejudicial a você ou aos seres, por exemplo causando sofrimento, matando, enganando, como prática...
P. Pelo que eu entendi eu não posso praticar apenas uma coisa, por exemplo, meditação, mas deixar os preceitos de lado...
R. Pode. Mas para que? Vai ser inútil e até prejudicial. A purificação é uma condição para que alcance alguma coisa na meditação por exemplo, ser generoso também é. Alguém que quer meditar e matar, roubar, mentir, falar palavras baixas ou ofensivas, ter relações sexuais impróprias ou se embriagar é só um egoísta mimado que quer aparecer ou fugir da culpa ou do sofrimento. Ele vai para o inferno. Meditar para que?
Existem escolas que não exigem nada. No zen não é assim. Se você não cumprir as exigências ao entrar nem pode sentar. É assim na vida. No shingon existem rituais a serem feitos cheios de rigor, se a pessoa detesta rituais obterá muito pouco ali.
Umas [escolas] vão deixando a pessoa ir testando os preceitos, gostam da tradução "treinamento" em vez de preceito, porque não os cobra responsabilidades. Se eu ver um aluno meu chingando ou falando palavrão ele só entra na sala se pedir perdão e se mostrar arrependido. Se roubar alguém eu o expluso. Se você chutar o sofá porque tropeçou na quina e ainda chingá-lo, vai ter que examiná-lo, se quebrou, e consertar, e pedir desculpas a ele calma e sinceramente, isto sim é treinamento, não agredir é preceito. Entendeu agora?
Tem que cumprir os três pré-requisitos. Mas chegará o momento de falar mais dessa parte. Alguma pergunta dento do tema exposto?
P. [Do próprio Hiroshi] Sabendo que estamos tratando de algo prático, o que vocês aprenderam hoje? Quem resume numa frase?
R. [De Davi Allen] Devemos procurar ver assim: tudo que nós experienciamos e chamamos de existente é passageiro e desprovido de realidade própria em si mesmo e por isso insatisfatório.
Hiroshi: Ótimo.
...
GASSHÔ
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