Por Hyokan Hiroshi
[Esse não foi o título original, não houve título, foi apenas uma continuação da palestra anterior. Os títulos e subtítulos foram colocados por este editor e tradutor]
Introdução
Tenho ouvido que dhyana é um fenômeno cultural, que é restrito à cultura oriental ou até mesmo a uma certa época, que não é apropriado para nossa cultura, ou que pela disseminação da meditação mindfulness está se tornando um fenômeno em nossa cultura. Bem, a primeira coisa que temos que notar é a cultura em que estamos inseridos. No geral os mesmos que dizem tais coisas também dizem que vivemos em uma cultura judaico-cristã, mas se observarmos a nossa cultura não poderemos constatar nada disso.
Precisamos questionar, primeiro o que seria cultura. E então o que seria judaico-cristã. Hoje nas Américas temos muitos países ditos cristãos. Mas com exceção dos países da América do Norte nós não podemos falar realmente em uma cultura judaico-cristã. Talvez no máximo um sincretismo cultural onde muitos elementos já foram naturalizados e entendidos como cristãos ou mesmo judaicos. Mas que não são na verdade.
Cultura, sem querer entrar em definições precisas, é uma transmissão de costumes, conhecimentos, moral, artes. Se olharmos para os países da América Latina e procurarmos seu referencial na cultura judaica, ou cristã, ou na Bíblia, pouca coisa vamos encontrar além de algumas palavras e frases de efeito, mas não necessariamente significando a mesma coisa. Os costumes, nossos costumes (posso dizer porque vivo muito aqui), são totalmente diferentes de costumes dessas culturas. Se formos falar de desenvolvimento cultural ou derivação é ainda pior, pois historicamente vemos que nossa cultura se assemelha mais a um desenvolvimento da cultura greco-romana pagã do que da cultura dos primeiros cristãos. Difere muito na América do Norte onde são muitos os judeus e muitos os cristãos, senão a grande maioria, que realmente seguem o fundamento de sua religião, tanto culturalmente quanto em fidelidade aos princípios ou fundamentos. Talvez lá até possamos arriscar em falar de uma certa cultura judaico-cristã estabelecida.
É justamente sobre isso que falo hoje, dos fundamentos, e dos princípios. Hoje quero falar do princípio, o que fundamenta o cultivo da prática que visa dhyana [(jhanas)]. O que fundamenta uma prática espiritual é a mesma coisa que fundamenta uma cultura? Isto pode ser uma regra? Podemos falar que nossa cultura favorece um certo desenvolvimento cultural ou que ele possui algum fundamento espiritual ou prático-espiritual? São todas perguntas que não pretendo responder, mas é interessante, porque dhyana também é uma cultura.
Quando olhamos para as Américas Latinas temos um sincretismo, onde em parte domina uma linguagem tida como cristã, mas muitos elementos, crenças, ações, rituais, princípios, moral, ditos pagãos, quer dizer que vêm do que os cristãos antigos consideraram assim. "Pagãos" é no sentido de religiões primitivas que são dominadas pelo animismo, muitos deuses, forças, barganha com seres sobrenaturais, uso de estátuas e objetos de poder, divindades e finalmente superstições.
O que estou mostrando é que se por um lado muita coisa é questão de linguagem e significados, por outro, a linguagem em si pode ser muito perigosa e enganadora, pois é por causa dela que cremos em ilusões e temos como realidade coisas que não são, e isto que falei é um bom exemplo.
Estou falando isso porque no budismo não é diferente. Se olharmos para o budismo, seja do norte ou sul da Ásia, mas mais notadamente no Norte, vemos a mesmíssima coisa, e coisa pouca do budismo original. Não podemos falar de uma cultura budista, principalmente em países como a China, a Índia, as Coreias, enfim. Temos um sincretismo da mesma forma que há no Tibet e Nepal onde você vê tantos elementos da cultura e das religiões ancestrais que se você estuda o budismo sabe que você tem que procurar muito até ver algo realmente budista, embora tudo esteja impregnado de relação ao budismo através da linguagem.
Então veja que isso, cultura isso ou aquilo, é uma ilusão, uma barreira que devemos superar, novamente estou falando da barreira de uma classificação, um nome (e isto é assunto bem budista), que limita e quase se opõe ao significado real das coisas. Isto é um rótulo e as pessoas terminam acreditando no rótulo sem examinar o conteúdo. Dhyana é o combate disso e das barreiras também que nos dividem, das classificações. Dhyana quer mostrar a realidade, então como vai debater diante de nomes errados?
Primeiro temos que olhar o que temos de fato.
Qual é o fenômeno que está ocorrendo, antes da linguagem, porque se não fizermos isso passamos a um subjetivismo sem fim. Primeiro temos que olhar o que temos de fato.
Então a primeira coisa é retirar essa visão de que há uma cultura isso ou aquilo, isso é uma generalização perigosa, e falsa. Existem elementos que podemos citar, comportamentos, tradições, religiosidades, etc.. Que podem ser transmitidos não exata e uniformemente que em seu conjunto pode ser chamado de cultura, mas que de fato não existe em conjunto, são elementos que se inter-relacionam. É como uma floresta, não existe floresta, é apenas como chamamos o conjunto de árvores, plantas, animais. O que existem são árvores, unidades que estão em relação.
Precisamos parar aqui pois chegamos ao primeiro ponto importante, metodológico. Dhyana viu que tudo que temos está em dependência, primeiro da consciência, e agora, nesse segundo momento estamos vendo: da linguagem. Então precisamos detectar o fenômeno antes da linguagem.
Apesar do próprio fenômeno poder ser considerado também como linguagem, precisamos vê-lo puro, antes do nome, como ele de fato é, um objeto da consciência, precisamos fazer essa redução fenomenológica, se é que se pode chamar assim, na nossa percepção, para olharmos para as coisas com mais pureza e sem rótulos, antes da percepção até, pois essa trás a identificação, pois o rótulo, ele depende do preconceito, de um conhecimento prévio condicionado, de um somatório de impressões que podem estar distorcendo a realidade. Que podem até muito bem estarem erradas.
Então para discernir é preciso não discriminar, não rotular, não destacar, apenas lançar o olhar e esse olhar agora tem que ser para dentro, pois sabemos que o fenômeno se desenrola na nossa consciência. Precisamos discernimento, e isso agora é discernir as coisas como são na realidade. Se parássemos aqui e disséssemos que dhyana é isso estaríamos criando um mundo de pessoas retardadas, isto é só uma pequena parte inicial. Na primeira vez falamos que tudo é consciência, agora falamos que tudo é linguagem e como a linguagem é um condicionante e limitante, podendo ser enganadora, temos que captar a consciência pura antes da linguagem. Resumindo. Agora sigamos em frente.
Assim é com cultura, não existe cultura, existe uma transmissão, feita por pessoas, de alguns elementos. Cultura é simplesmente o conjunto de transmissões, assim como a floresta é o nome do conjunto de indivíduos. Se existir cultura você é uma vítima, não tem jeito, o monstro vai devorar a todos. E se é assim eu sou um tentáculo do monstro, enfiando em vocês mais uma parte do veneno que vai consumir boa parte de sua vida, como fui vítima no passado quando fizeram o mesmo comigo, afinal é a cultura que faz, independente de seus elementos, ela seria cultura isso ou aquilo. Mas o bom é que não existe coisa, tal generalização que seja válida a respeito de absolutamente nada então vamos ao que interessa. Você anda na floresta, é um nela, não tem todas as árvores, não vê todos os bichos, só os do caminho por onde você vai.
Não existe cultura dhyana
Já observaram que não existe cultura dhyana? E dhyana é uma cultura. Eu disse que dhyana é uma cultura. Dhyana é uma forma de viver. A forma de viver ligado, como dizem, porém não tenso, alerta, presente. É uma cultura, totalmente diferente da comum, que se procura distração, alguém quer se distrair. Quer um trabalho que o agrade, mas não para estar atento e presente nele, mas para estar distraindo-se com ele. É muito estranho. Isso não é doentio? Ou não é assim? Uns querem aproveitar o tempo, outros querem um passa tempo, como assim?!
Mas dhyana não é assim, não se automatiza, não se distrai, ela tem que ser cultivada de instante a instante, assim é uma cultura porque dhyana temos que cultivar, de instante em instante estar atento. Mas não é estar atento de qualquer maneira ou a qualquer coisa. É prestar atenção às coisas, as do mundo, inclusive nós mesmos, consciência, corpo e mente, como elas são em sua verdadeira natureza: inconstantes, insatisfatórias, insubstanciais, condicionadas; e como nossa consciência na verdade é, pura, Nirvana.
Não existe cultura dhyana, ainda não inventaram, porque é algo trabalhoso para uns, prazeroso para outros, mas não são todos que querem, aliás são poucos. É como cultura rock, ou cultura zen, ou cultura gospel, não são todos que querem, mas nem por isso ela deixa de ser cultivada por quem quer ou gosta ou por quem entende seu objetivo ou por quem almeja seu objetivo, mas ao contrário dessas, ela é muito particular, nem num centro zen você vai ver as pessoas compartilhando dhyana, é algo bem particular, apesar de alguns grupos terem mecanismos de ficar lembrando uns aos outros, tocando sinos... Não existe como transmitir dhyana de uma pessoa para outra, de um grupo para outro. Porque não existe nem como ensinar, porque ela não pode ser ensinada, porque ela tem que ser descoberta individualmente, tudo que fazemos é dar algumas instruções sobre como manter a atenção ou como praticar o zazen, por exemplo, e então alguém poderá fazendo isso chegar a dhyana.
Não existe dhyana cultura porque ela é um estado de mente alerta, um dos estados de mente alerta, que tem que ser feito com equilíbrio e ensinado com muita responsabilidade. Porque não é simplesmente estar aqui agora como se tem ensinado, isso seria muito prejudicial e exigiria muito esforço. Dhyana é um estado não tenso, não estressante, não é pressão psicológica. Eu sempre imagino a pessoa num presídio praticando esse tipo de meditação "para estar feliz eu tenho que estar presente aqui aqui agora de instante a instante". Imagine, a liberdade mental foi a única lhe sobrou e ela ali "tenho que permanecer preso, tenho que permanecer aqui nessa prisão", parece piada. O método de dhyana também não tem a ver com não pensar nem esvaziar completamente a mente.
O presente tem em si o passado e o futuro, o aqui contém relação, lembrança, memória de outros lugares, tudo isso acontece na mente, quando se diz estar presente aqui agora de instante a instante quer dizer estar consciente de tudo que ocorre na consciência e que tudo ocorre na consciência, sejam os objetos sensoriais, puramente mentais ou mesmo o vazio. O agora não existe isolado, o aqui tampouco, nem dhyana é solipsismo, existem outras pessoas, outros fluxos de consciência, "tudo é apenas uma projeção da minha consciência", quem pensa assim tem um problema, tem uma ideia muito grande de eu e meu, está precisando urgente praticar dhyana da forma correta.
Dhyana não é uma religião ou uma escola de psicologia ou de filosofia, é uma terapia. Nessa terapia a pessoa vai se livrar justamente das falsas projeções sobre si mesmo e sobre tudo mais. Mas é uma terapia que todos precisam, principalmente os orientais, porque em nossa cultura eles se adaptam a quase tudo, é como se mesmo as mais tolas e prejudiciais ilusões pudessem ser todas bem aceitas de alguma forma, por isso a meditação fez mais sucesso lá. Aqui as pessoas são mais objetivas no sentido de metas, obstáculos e sua superação. Se um ocidental se depara com um problema de saúde ou de emprego, por exemplo, imediatamente ela pensa em formas de resolver e superar isso. Por muito tempo os orientais foram como aquele flechado da história do Buda "deixe eu ver se é isso mesmo? Será que estou mesmo doente, será que preciso mesmo de um emprego? Eu tenho um karma ruim para pagar. É melhor aceitar. Será que isso não é uma lição para que eu aprenda a me desapegar e meditar, não seria melhor eu desapegar disso? É melhor eu me acostumar logo com essa situação antes que comece a sofrer". Brincadeirinha, mas é bem por aí.
Dhyana é cultura
Dhyana é uma cultura. Porque dhyana tem que ser cultivada. Não é apenas estar presente e atento, tem que lembrar de estar atento, observando, consciente vigiando. Nos evangelhos aparece uma série de vezes a palavra vigiar e quando vem junto com orar ela vem antes. Vigiar é mais importante no sentido que vem primeiro, tudo mais para ser bem feito precisa que a pessoa esteja atenta, presente, consciente, vigilante, lembrado.
É preciso também estar lembrado que está ali e o que está fazendo, veja que a noção de presente não é deslocada de passado, não é como um sem memória que esquece cada segundo anterior, isto seria terrível, então se você aprendeu que Dhyana é uma concentração no presente apenas, por favor esqueça isso. São pessoas que foram ensinadas errado ou que são irresponsáveis que ensinam essas coisas.
E agora temos um terceiro ponto, que prova isso, pois tudo tem consequência, e tudo que é, é consequência de um momento anterior (tudo é condicionado, é uma característica desse mundo). Sim, porque somos humanos, não temos a visão de Deus, onisciente, isto é, de todos os tempos, todos os instantes e lugares presentes aqui agora. Buda também não disse que tinha esse tipo de consciência, nem que Nirvana era se tornar um deus ou algo do tipo. A onisciência de um buda está relacionada com o tempo e com uma individualidade, porque em sua onisciência também permanece a consciência de todo o fluxo anterior de consciência com o qual ERA identificado, por isso mesmo não se pode dizer que ele existe nem que deixou de existir, apenas que se libertou do samsara, que é o mundo triplo, dos ciclos de sofrimento.
E o que é dhyana? É o estado crescente em que a consciência vê as coisas diretamente como são, ou seja, não sofrimento, não transitório, não insubstanciais, isto é, Nirvana. Dhyana é primeiro o vislumbre, depois entrar, entrar e permanecer um tempo, até que no último estágio permanecer nessa visão, em Nirvana. E o que é Nirvana? É a realidade única, completa, plena, permanente, imutável, incondicionada, livre, pura, original, sem ilusão.
"Permanecendo completamente atento e plenamente consciente", veja que Buda trata de duas coisas distintas, atenção e consciência, atenção é um ato, é para nós, seres, consciência é um objeto.
Onde os seres vêem objetos múltiplos, o iluminado não vê diferente, mas ele vê consciência apenas.
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