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quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Vigência do Dharma por Buda

A Profecia sobre a Redução da Vigência do Dharma por Buda

por Octavio da Cunha Botelho
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Gravura reproduzindo o momento em que Pajapati Gotami insiste com Buda para ser ordenada a primeira monja budista.
            Quando lemos livros ou artigos escritos por adeptos ou por simpatizantes budistas, é possível encontrar estes autores se vangloriando do fato de Buda ter sido o primeiro, na história das religiões, a ordenar mulheres como monjas, elogiando assim o seu caráter tolerante com as mulheres. Entretanto, com base em uma investigação história imparcial e rigorosa, esta vanglória poderá ser infundada. Pelo que é possível verificar a partir dos textos religiosos, das inscrições e das descobertas da arqueologia, os dois primeiros líderes religiosos a ordenarem mulheres como monjas foram Mahavira, reformador do Jainismo, e Buda, fundador do Budismo. Ambos foram conterrâneos e contemporâneos, nos séculos VI e V a.e.c., sendo que o primeiro foi um pouco mais velho. Os dados não são abundantes e tampouco muito específicos, mas, tal como algumas passagens dos textos budistas deixam entrever, a ordem das monjas jainistas (sadhwis) foi fundada primeiro que a ordem das monjas budistas (bhikkhunis), ao mencionarem a existência de outras seitas que admitiam mulheres como ascetas, cujas referências podem ser às comunidades monásticas dos jainistas. O Kalpa Sutra, um dos mais importantes textos jainistas, informa que na época de Mahavira existiam 36 mil monjas (Jacobi, 1994: 267). Certamente, o número é exagerado, mas é capaz de, pelo menos, confirmar que já existiam monjas jainistas quando Buda ordenou a primeira monja budista, a sua tia e mãe de leite, Pajapati Gotami (a mãe de Buda, a rainha Maya, faleceu logo após seu nascimento, portanto ele foi amamentado e criado pela sua tia Pajapati Gotami), tal como uma passagem do Cullavagga menciona, mais especificadamente, no trecho onde são relatados os fatos que cercaram a ordenação desta devota budista.
Demora no registro escrito
            Na antiguidade indiana, época quando e local onde surgiu o Budismo, era comum os textos religiosos serem memorizados e transmitidos apenas oralmente durante muitas gerações, práticas que não foram diferentes com a tradição budista. As datas mais sugeridas para o nascimento e a morte de Buda são: 563 a.e.c. e 483 a.e.c. respectivamente, porém estas datas são controvertidas, a maioria dos autores coloca a data da morte (paranirvana) entre os anos 487 e 480 a.e.c. Após seu falecimento, os textos budistas foram conservados na memória dos monges e transmitidos apenas oralmente por cerca de quatro séculos até a passagem para a forma escrita no século I a.e.c., durante o Quarto Concílio Budista, convocado pelo rei cingalês Vattagamani no Sri Lanka (Hazra, 1982: 50 e Winternitz: vol. II, 1993: 10 e 21). A tradição cingalesa afirma que cerca de quinhentos monges trabalharam na tarefa de recitar e de copiar os textos durante este evento.
            Transcorrido tão longo tempo de transmissão oral e tanta demora até o registro escrito, é difícil acreditar na intocável originalidade do conteúdo. Akira Hirakawa denuncia: “Durante este tempo, os cânones mantidos pelas várias escolas foram expandidos e alterados”. E explica mais adiante: “Uma vez que um longo período transcorreu entre a época das compilações originais doSutra Pitaka e do Vinaya Pitaka e a época quando eles vieram a existir na forma atual, eles não podem ser restaurados em suas formas originais. Trechos mais antigos e mais novos dos textos foram misturados nos cânones em uso atualmente” (Hirakawa, 1990: 70). Então, em virtude desta demora na compilação escrita e a multiplicação de seitas logo nos primeiros anos, é comum encontrarmos um mesmo texto budista com conteúdos diferentes, quando comparadas as redações de distintas correntes. Portanto, esta ocorrência não é diferente com os textos do Vinaya Pitaka (coleção de textos budistas sobre as regras monásticas).
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Monjas (bhikkhunis) budistas em oração no Nepal
O tanto que estes textos foram alterados, durante os quatro séculos de transmissão oral, não é possível se saber com exatidão agora, apenas conseguimos obter uma pista quando comparamos as diferenças na redação, de um mesmo texto compilado das versões anteriormente memorizadas por diferentes correntes. Esta demora na fixação por escrito e a multiplicação de seitas budistas nos primeiros séculos, com cânones distintos e redações diferentes, levou Edward Conze a desconfiar da originalidade: “Das palavras verdadeiras do Buda nada foi deixado” (…) “a seleção do que foi preservado é devido mais ao acaso do que às considerações de antiguidade e de mérito intrínseco” (…) “O ‘evangelho original’ está além de nosso alcance agora” (Conze, 1996: 08-9). E ainda mais: “O historiador que quiser determinar o que foi realmente a doutrina de Buda, se encontra literalmente diante de milhares de obras, que afirmam todas elas virem diretamente de Buda, e que, no entanto, contém os ensinamentos mais diversos e conflitantes”. (…) “O certo é que só se pode chegar ao extrato mais antigo das escrituras existentes através de inferências e de conjecturas”. (…) “Todas estas intenções de reconstruir um budismo ‘original’ só têm uma coisa em comum. Todas estão de acordo em que a doutrina de Buda não era o que os budistas entenderam o que ela era” (Conze, 1997: 34).
Tripitaka (Tipitaka)
            Trata-se do nome das três coleções (pitakas) de textos do Budismo mais antigo. Elas divergem conforme a corrente, portanto abaixo será usada a classificação da versão páli, por ser a que será utilizada na análise da profecia de Buda mais abaixo, cuja divisão é a seguinte:
A) Vinaya Pitaka (Coleção de Regras Monásticas), formada pelos textos:
  1. Patimokka
  2. Suttavibhanga
  3. Mahavagga
  4. Cullavagga
  5. Parivara
B) Sutta Pitaka (Coleção de Sermões de Buda), formada pelos textos:
  1. Digha Nikaya
  2. Majjhima Nikaya
  3. Samyutta Nikaya
  4. Anguttara Nikaya
  5. Khuddaka Nikaya
C) Abhidhamma Pitaka (Coleção de Textos Especulativos) formada por:
  1. Dhammasangani
  2. Vibhanga
  3. Dhatukatha
  4. Puggalapannatti
  5. Kathavatthu
  6. Yamaka
  7. Tika-patthana e
  8. Duka-patthana
A coleção de textos Vinaya
A Coleção de Regras Monásticas (Vinaya Pitaka) sobreviveu em sete cânones, cujos nomes das correntes vinayas, com a língua original e a língua na qual o texto sobreviveu entre parênteses, são enumerados abaixo (Prebish, 1994: passim e Sujato, 2012: 21):
A) da tradição Mahasanghika:
  1. Mahasanghika (Sânscrito, sobreviveu em tradução chinesa)
  2. Lokuttaravada (Sânscrito, sem tradução)
B) da tradição Sthavira:
  1. Mahaviharavasin (Páli, sobreviveu na língua original)
  2. Dharmaguptaka (Gandhari, sobreviveu em tradução chinesa)
  3. Mahisasaka (Sânscrito, sobreviveu em tradução chinesa)
  4. Sarvastivada (Sânscrito, sobreviveu em tradução chinesa)
  5. Mulasarvastivada (Sânscrito, sobreviveu nas traduções chinesa e tibetana).
A ordenação da primeira monja budista
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Diferente de como muitos budistas se vangloriam, a ordem das monjas (sadhwis) jainistas foi fundada antes da ordem budista de monjas (bhikkhunis).
            Dos textos que formam a coleçãoVinaya (Regras Monásticas), interessa-nos aqui o capítulo X do Cullavagga, onde é relatada a história da ordenação da primeira monja por Buda, sua tia e mãe de leite, Pajapati Gotami. Este relato diverge em alguns detalhes quando comparamos as redações dos diferentes cânones doVinaya, de maneira que aqui será utilizada a versão páli do cânone Mahaviharavasin, seguida pela corrente Theravada (Rhys-Davids, 1989: 320s; Warren, 1995: 441-7 e Horner, 2001: 352s). Esta recensão relata que, depois de insistir por três vezes com Buda, para que as mulheres pudessem abandonar seus lares e entrarem para a vida monástica no SanghaPajapati Gotamise dirigiu para Vesali, onde se encontrava Buda, para então tentar mais uma vez. Chegando lá, acompanhada de cerca de quinhentas mulheres da região de Sakhya, com a cabeça raspada, com os pés descalços, com os membros empoeirados, com o rosto coberto de lágrimas, se colocou do lado de fora do pórtico do portão de entrada. Ao vê-la assim, Ananda, o discípulo e assistente de Buda, perguntou-lhe o motivo daquela aparência e daquele choro. Ela respondeu que estava assim porque Buda não lhe permitiu entrar para a vida monástica. Então, Ananda, decidiu interferir e se dirigiu ao local onde estava Buda para tentar mais uma vez, informando que sua tia, madrasta e mãe de leite, a grande Pajapati Gotami, estava no portão chorando porque desejava se tornar monja, mas não lhe foi permitida a entrada na ordem monástica. Daí, Ananda fez a solicitação da entrada deGotami na ordem por mais três vezes, o que o Buda recusou novamente. Enfim, Ananda fez então uma solicitação eloquente e comovente, o que finalmente resultou na aceitação do Buda, porém na condição de que Pajapati Gotami aceitasse previamente as Oito Regras Importantes (Atthagarudhammas).
            Estas regras para as monjas são seguidas até hoje nos países onde se conserva a ordem das monjas budistas (bhikkhunis), porém elas são bombardeadas por críticas das feministas que as consideram carregadas de sentimentos discriminatórios, depreciativos e preconceituosos com relação à mulher. Das oito regras, bastarão mencionar aqui apenas as duas mais discriminatórias e subjugadoras:
Regra 1: “Uma monja, que foi ordenada mesmo que seja por um século, deve reverenciar respeitosamente, levantar-se do seu assento, saudar com as mãos juntas, realizar a devida homenagem a um monge ordenado, mesmo que seja naquele mesmo dia. Esta regra deve ser honrada, respeitada, reverenciada, venerada, nunca ser transgredida durante sua vida” (Horner, 2001: 354 e Sujato, 2012: 47).
Regra 8: “De hoje em diante, advertência de monges pelas monjas é proibida, (enquanto) advertência de monjas pelos monges não é proibida” (Horner, 2001: 355).
            Obviamente, nem todos percebem estas regras acima com olhos aprovadores. Janice D. Willis, as avalia da seguinte maneira: “Estas oito regras especiais para mulheres servia para deixar claro o status separado e inferior das monjas comparado ao dos monges” (Willis, 1985: 62). Mais adiante, comentado sobre a oitava regra, ela acrescenta: “Claramente, tal regra pretendeu solidificar para sempre o lugar subordinado das mulheres dentro da Ordem Budista. Ainda mais, além de um período probatório de dois anos para as monjas, havia mais regras estabelecidas para elas do que para os monges. Também, frequentemente acontecia que os monges incorriam em menos punições que as monjas, por uma espécie idêntica de ofensa (Willis, 1985: 80).
A profecia da redução da vigência do Dharma
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Buda profetizou que, com a entrada das mulheres na ordem monástica, a duração do Dharma seria reduzida em 500 anos.
            Após aceitar as ordenações dePajapati Gotami e das suas companheiras, Buda se dirigiu ao seu discípulo Ananda e proferiu a seguinte profecia preconceituosa de que: “se as mulheres não tivessem deixado suas casas e se tornado monjas, o verdadeiro dhammateria durado por mil anos. Agora, uma vez que as mulheres deixaram suas casas e se tornaram monjas, a verdadeira religião (dhamma) não durará muito tempo, durará somente quinhentos anos” (Rhys-Davids, 1989: 325; Warren, 1995: 447 e Horner, 2001: 356). Em outras palavras, as mulheres são o motivo para o encurtamento da duração da verdadeira religião em quinhentos anos, ao invés de durar mil anos, durará apenas quinhentos anos, em virtude da entrada das mulheres na ordem monástica. Uma curiosidade é que esta profecia só aparece com esta redação, onde é especificado o número de anos da redução da vigência do Dharma (verdadeira religião), na versão páli do cânone dos Mahavaharavasins, enquanto que, nos textos dos outros cânones não aparece assim. Por exemplo, na versão sânscrita do cânoneMulasarvastivada, a redação deste trecho é mais enxuta e aparece assim: “Exatamente, ó Ananda, o domínio do Dharma, se as mulheres abandonarem suas casas para se tornarem monjas, não continuará por muito tempo” (Paul, 1985: 84).
            Esta profecia pode ter tido efeitos em alguns países orientais de predominância budista, pois nalguns deles a ordem monástica das monjas (bhikkhunis) foi extinta há alguns séculos, tais como na Tailândia, no Sri Lanka e em Mianmar (antiga Birmânia), porém sobrevive precariamente no Tibet, na China e com um tanto mais de vigor em Taiwan. Existem alguns esforços para se restabelecer a ordem das monjas naqueles países onde foi extinta, mas as tentativas têm resultado em vão, sendo assim, as aspirantes precisam viajar para outros países para serem ordenadas.
            Acusar as mulheres pelo motivo do declínio de uma religião soa absurdo nos dias de hoje, quando as mulheres têm demonstrado grande capacidade e habilidade nas tarefas externas, enquanto que no passado só cumpriam, quase exclusivamente, tarefas domésticas, sendo que, muitas delas ocupam hoje alguns dos mais importantes cargos de liderança no mundo, fato inimaginável na época de Buda.
            Agora, se acreditarmos nesta profecia preconceituosa, ela deixa duas conclusões. Se Buda pretendeu dizer que a verdadeira religião (Dharma) é o mesmo que Budismo e que iria durar no máximo quinhentos anos, seu fim não aconteceu no prazo por ele apontado, uma vez que a religião budista existe há cerca de 2.500 anos e ainda é florescente em muitas partes do mundo, inclusive passou a ser objeto de crescente interesse no Ocidente a partir do século XX. Se ele, por outro lado, pretendeu dizer que, depois dos primeiros quinhentos anos, o Budismo não seria mais uma verdadeira religião, resta então investigar o que é enfim este Budismo atual, pois sem uma explicação convincente para esta última hipótese, parecerá que é uma religião com o prazo de validade vencido.
Obras consultadas
CONZE, Edward. A Short History of Buddhism. Oxford: Oneworld Publications, 1996.
______________ El Budismo: Su Essencia y su Desarrollo. México: Fondo de Cultura Económica, 1997.
HAZRA, Kanai Lal. History of Theravada Buddhism in South-East Asia: with Special Reference to India and Ceylon. New Delhi: Munshiram Manoharlal Publishers, 1982.
HIRAKAWA, Akira. A History of Indian Buddhism: from Sakyamuni to Early Mahayana. Honolulu: University of Hawaii Press, 1990.
HORNER, I. B. Women Under Primitive Buddhism. London: George Routledge and Sons, 1930.
___________ (tr.) The Book of the Discipline (Vinaya Pitaka), vol. V (Cullavagga). Oxford: The Pali Text Society, 2001.
JACOBI, Hermann (tr.). Jaina Sutras, Sacred Books of the East, vol. 22. Delhi: Motilal Banarsidass Publishers, 1994.
PAUL, Diana Y. Women in Buddhism: Images of the Feminine in Mahayana Tradition. Berkeley: University of California Press, 1985, p. 77-94.
PREBISH, Charles S. A Survey of Vinaya Literature. Taipei: Jin Luen Publishing House, 1994.
RHYS-DAVIDS, T. W. and H. Oldenberg (trs.). Vinaya Texts, part III (Sacred Books of the East, vol. 20). Delhi: Motilal Banarsidass, 1989, p. 320s.
SUJATO, Bhikkhu. Bhikkhuni Vinaya Studies: Research & reflections on monastic discipline for Buddhist nuns. Santipada, 2012.
WARREN, Henry Clarke. Buddhsim in Translations. Delhi: Motilal Banarsidass Publishers, 1995.
WILLIS, Janice D. Nuns and Benefectresses: The Real Role of Women in the Development of Buddhism em Women, Religion and Social Change. Yvonne Y. Haddad (ed.). Albany: State University of New York Press, 1985, p. 59-85.
WINTERNITZ, Maurice. A History of Indian Literature, vol. II. Delhi: Motilal Banarsidass Publishers, 1990.

quarta-feira, 4 de setembro de 2019

A história do theravada


Desde o início deste blog tenho defendido o theravada (a escola à qual eu mesmo seguia a mais de uma década) como a escola mais antiga e mais ortodoxa. Apenas transmiti a informação tal qual recebi da tradição e confirmada por muitas outras escolas e por extensa pesquisa neste sentido.

Mas se todas as outras escolas que confirmam isso (ainda que hajam muitas que neguem também) estiverem erradas? Geralmente elas receberam essa informação da própria escola theravada e não há muita razão para que elas duvidassem isso enquanto escolas religiosas. Mas enquanto estudante de história obviamente temos que ir muito além disso. Se você colocar as palavras história e theravada em um buscador na internet, provavelmente você terá umas dez páginas de de opções que apenas vão de alguma maneira dar razão à lenda que a escola theravada é a mais antiga e que tem ligação com os primeiros concílios. Mas se você buscar textos, artigos históricos, pesquisas arqueológicas e históricas que partam de informações mais acuradas e investigadas nas fontes e documentos antigos teremos uma outra história, bem diferente dessa propagandeada antiguidade do theravada.

Para iniciarmos esta série sobre a história do theravada deixo aqui um video do amigo André Munis que me ajudou muito a encontrar mais informações sobre essa verdadeira história e constitui também um resumo do que tenho achado até agora. Assista, talvez seja muito surpreendente para você caso conheça a história comum apresentada por sites ou pelos próprios adeptos da escola theravada. Eu já vinha fazendo esta pesquisa quando era participante do theravada, devido a antiguidade de muitos textos que constituem o cânone chinês que (estranhamente?) são mais antigos que os do cânone pali, considerado o mais antigo. Não quis publicar para não contrariar ou chocar meus amigos theravada, mas depois experimentar suas reações sectárias quando você não concorda com e até acusações gratuitas sem qualquer fundamento, percebi que a grande maioria não desenvolve uma real amizade e pior ainda compaixão ou mesmo empatia pelos seus amigos, pelo contrário, a amizade e gentileza se reduz ao período de concordância ou de silêncio dos discordantes. A questão é que não lhes interessa a verdade, mas o que diz a tradição, embora os monges mais liberais são exautados mesmo rompendo até com os princípios mais básicos do dhamma. Por favor assista esse primeiro vídeo. Trari evidência de pesquisadores sérios que vão confirmar algumas coisas desse primeiro video.


https://www.youtube.com/watch?v=AyfFdHa3ug8&t=42s

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

O COMEÇO



Numa sala com um pequeno tablado Ryokan entra balançando as mãos em saudação e diz, em voz suavemente cantada no seu sotaque japonês-americano, "meu nome é Ryokan Hiroshi, venho aqui como professor itinerante a convite de vocês"... E enquanto escrevia uma lista de temas num quadro dizia seu objetivo: ..."para estudarmos esses temas e outros que surgirão, eu falarei antes, apresentando e ensinando, pois vocês me tem por especialista, e depois conversaremos. Mas antes vamos às apresentações de cada um de vocês, por que estão aqui?"

Então ele sentou numa beira do tablado e foi mirando e apontando as pessoas segundo algum critério que transparecia no seu olhar, o que, ao final se percebeu, era por idade. As pessoas diziam seus nomes e a razão de estarem ali sentados naquelas cadeiras escolares como ele bem frisou conscientizando as pessoas de suas presenças ali e de suas razões pessoais para isso.

Essa abordagem próxima, atenta e impressionante atraiu tanto a atenção das pessoas que nenhum dos estudantes tem essa lista de temas, ninguém anotou, todos estavam concentrados naquela figura, talvez encantadora por sua simplicidade e inteligência. Depois disso ele apagou o quadro e escreveu um tema diferente do que figurava como primeiro da lista. E esse alguns anotaram, "Apresentação".

APRESENTAÇÃO

Bom dia, meus amigos, já fomos todos apresentados e conto com sua atenção e amizade para conversarmos sobre o tema que apresentarei hoje aqui, sucintamente, porque é um tema que vai em muitos conhecimentos, sobre a proposta clínica e terapêutica do médico, como se chamou a si mesmo, o Buda. Essa proposta, indo direto ao assunto, se pode classificar em três abordagens que são três momentos e, ao mesmo tempo, três desenvolvimentos que já estavam na verdade implícitos no primeiro.

Primeiro temos a buda-terapia auto [centrada], que é a forma que todos conhecem e se tornou a prática religiosa das religiões budistas praticamente em todas que é a chamada meditação; depois temos a abordagem realmente religiosa, decodificada para a maioria como devocional ao Buda, aos budas para outros, aos budas e bodhisatvas para outros, a um certo buda do passado para outros e a um certo buda do futuro para outros (que já veio, no entender de uns, e que virá no entender de outros, então observe que cada escola de budismo está preocupada apenas com sua linha e nenhuma fará um estudo como este nem jamais abordará o que abordaremos aqui hoje porque é uma visão de dentro e de fora de todas as escolas, como se fosse ciência da religião praticamente, mas feita por cientistas que passaram por todas as escolas em seu conjunto); depois finalmente temos a buda-terapia centrada no outro ou em todos os seres ou no caminho do bodhisatva como é conhecido.

Já devem ter notado que o estágio do meio é bem mais complexo e realmente, exigirá muito mais informação, é complicado, por isso deixarei por último, já que não teremos tempo de aprofundar nenhum deles, que pelo menos seja visto quando já tiverem uma ideia do que é o budismo na visão oriental, sua prática e seus resultados (algo que deveria ser sempre observado).

Então como foi pedido resumirei minhas teses apresentadas sobre o assunto para dar conhecimento pelo menos de sua existência e de que existem muitos estudiosos e muitas posições diferentes e que não existe consenso algum, como se quer fazer parecer, sobre determinados temas que geraram escolas filosóficas. Tudo que se conhece de budismo hoje não vem de nenhuma escola original única específica mas de combinações e desenvolvimentos da informação de um número de escolas que surgiram logo no inicio do budismo.

Com Buda ainda vivo já haviam duas escolas, ambas seguindo o ensinamento do Buda, uma que se formou nas andanças do Buda por terras mais distantes e lá permaneceu, e uma que o acompanhou desde o início até o fim da trajetória, sendo que nessa mesmo houve pelo menos uma grande cisão, com o Buda ainda vivo. Então na verdade seriam três escolas, mas esta não foi considerada mais seguindo o Buda então são duas. Isto fica mais explícito ou famoso no Sutra do Lotus, mas aparece em muitos outros suttas e sutras, é só prestar atenção.

Só que esta dissidência, que deixou de receber o restante dos ensinamentos, considerando-o como desnecessário para eles que eram já seguidores por muitos anos, influenciou muito as outras que surgiram depois, pois os monges que encontraram essa divisão deram bastante crédito a esses outros, que obviamente haviam vivido ao lado do Buda por muitos anos. Outro ponto é que essa dissidência gerou grupamentos diferentes o que resultou em grupamentos diferentes também de ensinamentos e de pensamento. E isso também aconteceu com as outras duas divisões originais. Não é nosso objetivo aqui hoje detalhar isso nem dar nome a essas escolas, mas só mostrar a diversidade de pensamento e sua origem no princípio do que se convencionou chamar budismo já.

Então vejam que não há como não ter havido confusão, por causa de um acontecimento desse... Portanto cada escola trás a sua verdade, não quer dizer dizer que alguma detenha o conhecimento certo, autêntico e completo, também não quer dizer que não, nem que tudo que existe possa ser relativizado em relação a escolas. Não, Buda existiu e ensinou ensinamentos, que são como são, o que se diz que ele disse não altera o que ele realmente disse, existe obviamente ali muito, muito mesmo, do que ele disse.

Por isso um cânone budista não é como um cânone cristão, algo que possa ser tido como em teologia, inerrante apesar de trabalho humano de escrita, mas [sim] como trabalho humano de escrita que contém não exatamente o que Buda disse, mas da forma como foi transmitido pela tradição oral e posteriormente anotado. Esclarecido esse ponto, então entendam com isso o porque de minha abordagem, como se fosse de fora, para apresentar aos que estão de fora: porque vocês estão de fora, mesmo os que aqui são budistas, pois estão dentro de sua própria visão ou da visão de sua escola e de fora de todas as outras escolas, ou seja, da maior parte do que se chama budismo. Mais tarde verão que não existe tanta intersecção assim entre as escolas como o convívio faz parecer.

A TERAPIA CENTRADA NO INTERIOR OU AUTO-CENTRADA

Dito isso posso passar ao ponto que quase todas as escolas, 80% eu diria, mais ou menos, estão de acordo, sobre a necessidade da técnica, seja ela como for, que se chama meditação (afinal estou aqui para falar de meditação e como vocês podem convidar um professor que não ao menos gosta da palavra meditação para falar de meditação? Veremos). Não quero falar de visões de escolas aqui, mas apenas do ensinamento puro e simples como está registrado, seu aspecto prático.

A meditação é uma prática extremamente fácil. O ensino errado dela como uma prática difícil é apenas um erro didático (claro os professores budistas não tiveram que estudar didática nem psicologia, nem oratória, etc.). Esse erro consiste em confundir o resultado mais profundo com a própria prática. A prática é extremamente fácil, seu resultado, a concentração (Buda nunca falou em meditação) é que é difícil para nós quando estamos destreinados nisso. A controvérsia surge apenas [1] no que é essa concentração, e [2] quais são os seus níveis necessários e [3] para que ou por que precisamos praticar a concentração, chamada aqui no ocidente de meditação (não vou tocar nesses pontos controversos [1 e 2], isso vocês descobrirão por si mesmos se praticarem, somente falo do último [do 3], "para que"). Ou seja, há grande confusão por causa do uso dessa palavra, que confunde a prática com seu resultado. No oriente geralmente não existe tanta confusão porque são duas palavras diferentes, bhavana, a prática, o procedimento, para se atingir dhyana, ou a concentração. Um dos motivos para que eu use mais a palavra dhyana...

Meditar, a prática, consiste simplesmente em prestar atenção. Estão surpresos? É isso mesmo que vocês ouviram, a prática da meditação é só e simplesmente prestar atenção. A ferramenta mais importante da prática é a atenção. Buda não invetou isso, é claro. Ele praticou o que lhe foi ensinado, só que ele foi a resultados diferentes, ele tinha outras buscas diferentes daquelas de seus professores. Mas em todas as culturas essa prática existe, cada uma envolta em seus próprios procedimentos.

Aqui vocês tem essa herança judaica muito forte, os judeus meditam, o seu procedimento é meditar na lei dia e noite, ou seja, é focar a atenção no conhecimento da lei e no seu cumprimento, no comportamento o tempo todo de acordo com a lei. Os cristãos herdaram em parte essa meditação, mas muito menos, pois seu procedimento é mais dividido em duas partes, meditar na escritura, ou seja, ler remoendo, recebendo a inspiração divina, lentamente e com plena atenção e a outra é bem parecida, eu diria que igual nesse aspecto, à budista, que é estar todo o tempo vigilante, e mais, como se Jesus fosse voltar a qualquer momento, com a lembrança do Cristo também como habitando seu corpo, dentro, e como modelo de comportamento, externamente, e ainda, aliado a isso, em oração todo o tempo.

No Egito e na Grécia antigos a meditação derivada da escola hermética era refletir longa e concentradamente sobre um assunto considerado superior. Hermes relata isso logo no inicio de seu Corpus Hermeticum, como estava compenetrado, refletindo acerca dos mistérios da existência, de Deus e dos seres, e sua mente foi como que arrebatada, e nisso se baseia a meditação hermética. Em yoga, que, apesar de ainda não sistematizada na época, influenciou muito a vida e a forma de meditar do Buda, a atenção se dirige ao corpo, à respiração, e então só depois no mais profundo, como o budista entra logo no início, [atenção] na mente e na consciência, seu funcionamento, etc.. Semelhantemente no taoismo, a contemplação passiva dos fenômenos, da natureza, semelhantemente  entre os indígenas aqui da Norte América, semelhantemente a outras culturas que podem ser chamadas xamanísticas...

O problema é que as pessoas não conhecem muito a história do oriente e lançam tudo isso muito para trás no tempo, mas todas essas coisas praticamente pertencem ao mesmo milênio surgindo em lugares diferentes, mas mais tarde com a expansão do comércio e das conquistas se encontrando no mundo palestino, também ao norte da Índia e no mundo helenista onde se popularizam em comparação com o que eram antes. Como Patanjali sistematizando yoga mais ou menos no ano 150 a.C.; o conhecimento hermético entre a elite grega em Alexandria; o budismo também provavelmente encontrou os essênios e com certeza mais tarde os cristãos e depois os gnósticos. Haviam monges itinerantes budistas no mundo helenista da época em que Jesus estava andando por ali e provavelmente eles constataram semelhanças e diferenças entre os procedimentos tanto que surgem três vertentes bem diferentes mais ou menos a partir daí. Surge a do budismo tântrico que dizem ter sido influenciado por hinduísmo, certamente por yoga, politeísmo, panteísmo; também surgem o budismo que enfatiza o caminho do bodhisatva, talvez até influenciado pelo cristianismo; e uma corrente que se aproximava mais do estilo de vida mais simples do budismo inicial influenciado muito especialmente pelo taoismo, mas também provavelmente pelo mundo helênico como se pode ver na arte na China da época que tinha sua relações comerciais e no uso de termos e conceitos mais ocidentais pelos eruditos budistas.

Mas no budha-dharma, no ensinamento de Buda, há um procedimento indispensável, por isso ele sistematizou esse procedimento e criou um trinamento intensivo, durante parte do dia para o desenvolvimento desse treinamento, que tem dois momentos, o treinamento em si e a vivência do que foi treinado no dia a dia, isso é toda a budha-terapia em sua abordagem que primeiro quero falar, esse treinamento. Vamos a ele.

O TREINAMENTO FORMAL

Aqui está uma frase do Buda encontrada no Digha Nikaya, vamos ler juntos: “Impermanentes são as coisas condicionadas, sujeitas à origem e cessação. Tendo surgido, elas são destruídas, a sua cessação é a verdadeira bem-aventurança.” [(usei a tradução mais conhecida encontrada em www.acessoaoinsight.net para maior exatidão)] Não há dúvida no budismo sobre isso, sobre esse assunto. Mas vamos prestar atenção ao que diz.

Nos devemos obedecer aos preceitos e treinar ninguém transcende isso. Um desperto não ultrapassa isso, porque quando ele está livre ele não consegue mais não cumprir os preceitos, parece uma contradição, mas é isto, quando ele está livre, desperto ele não transcende os preceitos nem o treinamento, pois ele naturalmente os cumpre e já está treinado.

Por outro lado vamos prestar atenção ao que diz: "Impermanentes são as coisas condicionadas, sujeitas à origem e cessação."  Ele não está falando de cultivo, de treino, todas as coisas condicionadas, treinadas, cultivadas são condicionadas, são surgidas e devem desaparecer porque "tendo surgido, elas são destruídas, a sua cessação é a verdadeira bem-aventurança." Veja bem, elas, todas, vão desaparecer, e mais, seu desaparecimento é a verdadeira bem aventurança. Isto é o princípio do paradoxo aplicado à iluminação, mas isso é outro assunto, pois aqui temos que ver quem está treinando e quem será liberto, o condicionado está treinando, o eu [(ego)] está treinando e obedecendo para que o verdadeiro eu seja liberto, o incondicionado seja liberto. O que vai despertar? O que vai ser libertado? Aquilo que nunca esteve preso, aquilo que nunca foi apagado, nunca dormiu, nunca sonhou. O que é isso? O incondicionado, o não alterado, o não mutável, o permanente, nas palavras de Buda, O Eterno. O que está aí dentro de você, mas você não tem acesso, permanece como que morto, não é a consciência biológica, não é a consciência animal, independe disso, é a consciência pura, que não surge na dependência de matéria e mente nos doze elos, é o que o zen chama de verdeiro eu, que os cristãos chamaram de Cristo dentro [(ou Cristo interno nas traduções latinas e tradições místicas)], que os hermetistas chamaram de nous [(ou "seu próprio nous" com letra minúscula)], e assim por diante.

Eu tenho que falar assim porque Buda o chamou simplesmente de incondicionado. E não diferenciou o incondicionado de Nirvana, nem de Dharmakaya, a não ser em pouquíssimos sutras, como os Tathagatagarbha-sutras, e isto ficou muito difícil para os ocidentais e para os japoneses também, por isso fazemos comparações e as tradições tântricas do Japão também deram diferentes nomes, para entendermos o que Buda está chamando de desperto, de buda, de liberto, de tathagata. Thathagata é o que assim veio e assim retornou, que nunca se alterou, que permanece idêntico ao que sempre foi, puro, incontamindo como é descrito em alguns suttas, vazio de todas as impurezas, de toda dependência (pois incondicionado), de sofrimento, de toda e qualquer mudança, variação, impermanência. A destruição do que é condicionado, ou seja, visões errôneas da realidade que criam o mundo de ilusão, é a verdeira bem-aventurança, visões errôneas, sentimentos errôneos, desejos errôneos...

Que adianta eu dizer isso amigos, algo tão filosófico? Para que vocês não caiam no erro de quase todos os budistas do oriente, de estarem cultivando a atenção vigilante [(mindfulness)] no eu ou do eu ou do eu biológico. Não é essa consciência que precisa ser percebida, é a consciência sutil, aquela que está sempre presente, por trás de todas as outras e de todos os estados, mesmo no sonho sem sonhos (ou escuridão sem memórias ou nada). Vocês estão identificados com a mente ou com o corpo, com a consciência biológica, não vai adiantar reforçar isto, vai piorar, vocês tem que acordar para a consciência verdadeira que independe do corpo e da mente, é para isso todo o método e todo o discurso de Buda, não para outra coisa. O que vocês me dizem?

Platéia: Me parece complicado para nós ocidentais entendermos as definições que não são definições do Buda, as definições negativas, que vão descrever as coisas pelo que elas não são, tais como não-eu e Nirvana, ou se isso é um estado ou algo. É que me parece muito difícil, eu mesmo tenho receio, temo praticar algo que não tenho definido qual o resultado a longo prazo ou a curto prazo. O que devemos procurar? Qual é o objetivo? Eu vejo que isso não é definido na meditação quando se ensina.

Resposta: Geralmente no começo não, a pessoa tem que ir vendo por si mesma. Eu considero uma didática não boa. Depois que você está treinado e tranquilizar a mente e atingir alguma concentração deve dirigir sua mente ou para os graus dhyana ou para percepções específicas do ensinamento como as três marcas da existência, os doze elos da originação interdependente, etc.. O problema é que só ensinam isso para monges ou no máximo em alguns casos para pessoas muito experientes. Também discordo dessa didática. Logo no começo a pessoa tem que saber o que fazer e para onde vai com sua mente e consciência. Se não fica perdido, afinal tudo que conhecemos se encontra na consciência, ainda que não esteja aparecendo no momento...

P. Mesmo assim eu acho difícil, em comparação com outros sistemas, que a pessoa se anime para praticar algo que o levará a uma espécie de anulação de si mesma.

R. Não precisa ser assim. Isso pode acontecer numa escola mal dirigida, mal orientada, ou numa escola que é uma distorção (como existem de fato). O uso da concentração como falei tem objetivos, de conhecimentos e compreensões específicas, e você pode usar também como ferramenta para seus objetivos pessoais e desobstruções pessoais, porque o processo da meditação antes de tudo é de remoção de obstáculos. Isto que está falando pode ser uma questão da linguagem. Veja...

A escola dhyana, o chan, o zen talvez tenham sido as primeiras a investir na solução do problema da limitação da linguagem em expressar as realizações espirituais. Por um lado através de paradoxos, questões complicadas e aparentemente insolúveis como os koans, gestos, ações, ações simbólicas, por outro lado através de um densa produção intelectual e filosófica que procurava explicar justamente o inexplicável em muitos de seus pontos. É nessa literatura que vai tratar os mesmo fenômenos com novos termos sem se preocupar muito com os tradicionais, mas buscando termos que expressem mais o tipo de realização que eles se propunham e muitos haviam realizado.

Então temos a experiência do "verdadeiro eu" em vez de a "experiência do vazio de um eu"; o "auto-conhecimento" ou "conhecimento de si mesmo" em vez do conhecimento "das coisas como realmente são"; "esquecer de si" em vez de mindfulness simplesmente ou de "consciente da consciência" ou do "lembrar-se de si" de outros; consciência-apenas ou mente-única (uns dizem) e até Deus no lugar de Nirvana ou incondicionado, muitas vezes. Se vocês observarem bem, isso parece até uma heresia, trocando as definições negativas antigas (o que a escola [zen] da não-mente vai tentar resgatar depois), por conceitos positivos. Mas na verdade observe que todos os primeiros conceitos não tem referencial na experiência nem no mundo tal qual conhecemos, não existe como ter uma ideia deles, essa mudança de termos vai dar uma ideia a pessoa daquele que buscamos. Isto é apenas uma ferramenta, pois, como alguém vai dedicar a vida a uma libertação a qual sequer pode conhecer as características? Ou como você disse bem, como alguém vai se dedicar a algo que parece ser descrito como uma aniquilação de si mesmo?

Para os ocidentais isso fica fácil de entender se compararmos às palavras de Cristo, quer ver?

"Negue-se a si mesmo", parafraseando, "Quem perder sua vida por amor a mim vai ganhá-la, mas quem agarrá-la vai perdê-la". É quase o mesmo. Entendeu agora como num passe de mágica?

P. Sim. Verdade.

R. Essas escolas são na verdade primeiro uma nova linguagem, não uma nova escola, uma nova filosofia. Mas eles procuram dar o entendimento da mesma coisa. Veja, não tem como você ter uma ideia das "coisas como realmente são" se você nunca viu as coisas como realmente são e só conhece as impressões, aparências, ilusões, tem que haver um referencial ao menos na linguagem. O que é atenção plena [mindfulness]? Pergunte a si mesmo se já teve essa experiência. Como é o não-eu [non-self]? Não é, você não vai encontrá-lo, não vai encontrar um "não-eu". Como é Nirvana?Como vou saber como é isso para que eu possa querer isso? Acontece que aquele encontro de culturas que falei proporcionou isso, ver no outro, o que é seu próprio, imaginar que é o mesmo, mas com outra explicação, sob outra perspectiva, ou pelo menos algo similar e usar então uma ferramenta muito utilizada pelo Buda, comunicar o incomunicável através de símiles, e agora temos novos símiles. Isto pôde também resultar em novos conhecimentos e até inovações técnicas. Uma nova forma de compreender também proporcionou outras novas compreensões, algumas se incorporaram à tradição, outras geraram novas tradições, outras transcenderam a tradição entrando nos campos da filosofia, psicologia; outras apenas foram vistas e comentadas nessas tradições e meios budistas e não-budistas.

P. Eu não vejo essa prática como você falou nos cristãos, nem vejo que eles tenham esse entendimento, eu não vejo relação com o budismo.

R. Eu falei de cristãos, não de denominações que se dizem cristãs, não de pessoas que se dizem cristãos, não de instituições. Todo cristão deve estudar a bíblia, e tudo isso que falei é bem claro lá, todos que estudam a bíblia sabem disso, devem ter um comportamento, que obedeça os mandamentos incluindo os de Jesus, que não escandalize a outros, deve ser sempre vigilante, meditar e orar constantemente, etc., tudo que falei e mais muitas coisas. Os que não praticam ou nem sequer sabem disso podem ser chamados cristãos? Não. Mas eles se dizem cristãos. O mesmo ocorre no budismo. Não pense que é diferente, são pessoas. Você sabe como é no oriente? Lá muitos se dizem budistas mas não sabem o que é dana, sila e bhavana, não estudam os ensinamentos, não meditam, não cumprem os preceitos nem se dedicam a alcançar os paramitas, e existem escolas e instituições assim como existem no cristianismo que não ensinam a essência do ensinamento, como há no cristianismo instituições que não ensianam os fundamentos, essas não ensinam os fundamentos budistas, mas coisas muito diferentes como rituais e mantras. Existem pessoas que simplesmente assistem a cultos e nada praticam, outros que simplesmente se dizem budistas por ter nascido numa família budista. Eu diria até que são uma maioria, que se enquadra em alguma dessas características ou em todas elas. Essas pessoas que agem assim e essas instituições podem ser chamados budistas? Não.

O problema aqui é que todos acreditam que nasceram numa cultura cristã e que sabem o que é o cristianismo, mas não sabem. A mesma coisa os críticos acadêmicos não conhecem o que criticam, não estudam o que criticam, como podem criticar? Ou só podem criticar e atribuir histórias e características que não existem. A mesma coisa os que vêem o budismo como uma forma de adoração a Buda e que Buda é como um Deus, isto está correto? E se eu disser que existem pessoas que se dizem budistas que pensam assim? Então vocês vão culpar essas pessoas ignorantes da visão errada das outras pessoas, certo? Exatamente as mesma coisas acontecem, em todo lugar, porque somos humanos, imersos em maya, ilusão, malícia e ignorância. O conhecimento proporcionado pelo simples estudo já evitaria boa parte desses enganos.

Além dessa relação (negativa aqui), está claro que a prática comum de todos os exemplos que dei é dirigir a atenção para um foco, todos estão praticando uma concentração em algo, é este o ponto. A prática é a mesma embora mude [a] o objeto de meditação ou [b] a interpretação do que ele é ou [c] o método pelo qual se dirige a atenção ou [d] a interpretação das experiências obtidas. Você levou em consideração todas essas variáveis? Geralmente as pessoas não as considera, simplesmente vão lá e pensam sob apenas uma delas, uma única ótica. Se não tem consciência do similar também terá pouca ou nenhuma consciência das variáveis e vice-versa (coisa de pesquisador). Além disso todos os sistemas que falei tem uma norma moral, semelhante inclusive, uma dieta mental, e todos propõem temas e leis sublimes eternas. Eu não posso exigir que percebam como um cientista da religião ou um psicólogo ou antropólogo, por isso mesmo estou mostrando isso, de forma bem simples e resumida, digerida, pois apesar de não haver necessidade de se aprofundar nisso, é necessário que reconheçamos os pontos que devemos ver de agora em diante, que não é mais o mesmo foco superficial de antes. Todas essas religiões, sistemas, filosofias e culturas que falei tem sua própria dana-sila-bhavana, não? Precisamos compreender o outro, do ponto de vista do outro, se estiverem errados não vamos conquistá-los com críticas, mas com nossa visão, podemos apresentar um aspecto que não estão vendo se pudermos perceber. A grande ligação é essa. Há uma falha, um limite humano de perceber, em qualquer pessoa, em todas, um que vê uma coisa não vê outra e assim por diante. Religião podemos discutir, debater, apresentar e nisso passamos a ver mais do outro. Espero que tenha visto agora...

Todos esses que falei propõem uma certa unificação final ou retorno a um estado original, uma mudança, e que isso clareará sua visão no futuro. Nenhum esforço nesse sentido merece nosso desprezo, todos tem algo a nos informar e nós também temos algo a informar. Se isto surtirá efeito, se será praticável e se será levado à prática é outro assunto. Em todas essas culturas existem pessoas em vários níveis de compreensão dessa mesma cultura. Não estou me colocando como um budista nem como um cristão nem como um psicólogo nem como um pesquisador, mas como justamente alguém como qualquer outro que debate sobre qualquer coisa que conhece e que viu. As pessoas desenvolveram uma reação contra o religioso que tenta convencer outros de sua religião e não vêem que essa defesa passa por justamente criar falsas idéias sobre aquilo que aquela pessoa vai apresentar e ignorar o que ela vai apresentar. Depois vamos por aí criticando o que ignoramos, o que decidimos ignorar. Não é dizer que devemos considerar todas como válidas ou similares, mas estamos falando agora de pessoas, sua colocação foi sobre as pessoas e devemos tratá-las com a mesma amabilidade como se nós mesmos estivéssemos ali naquela situação.

[Havia mais uma pergunta dessa mesma segunda pessoa e a resposta, mas o texto foi perdido.]

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

Características do tipo de governo recomendado por Buda - Parte 1

Resolvi publicar esse artigo porque meu trabalho sobre o sistema de governo indicado por Buda é muito longo, e tendo feito até agora apenas a uma parte (que se concentra nos suttas do Digha Nikaya), ele NÃO trata de outros sistemas, e sim do sistema apresentado por Buda, porém comenta sobre as consequências desses sistema o que inevitavelmente nos leva a comparações com outras propostas, sejam de sistemas de governo ou de sistema político.

Então como alguns trechos desses suttas tem sido usados erroneamenete, deslocados do contexto e mesmo com a intensão deliberada de enganar (certo tradutor chegou até mesmo a mudar sua tradução retirando palavras com intuito de que esse discurso não parecesse contrariar suas idéias políticas), é coviniente que sejam mostrados os trechos inteiros de onde as frases foram citadas com intensão de fazer parecer certa ideologia que certos autores e tradutores começaram a exaltar. Estes tem usando sua "autoridade" em matéria de budismo para enganar a maioria budista que pouco estuda dos suttas, embora alguns até leiam e até dediquem horas de estudos aos textos e livros desses autores, fraquíssimos em matéria de budismo realmente, tanto que já se até convencionou chamar em países orientais de "budismo light" ou "budismo americano".

No meu trabalho explico longamente as consequência lógicas e óbvias da proposta do Buda, faço comparações com idéias atuais e demarco bem o que não é e o que não pode ser consequência das idéias apresentadas por Buda, mas aqui, longe disso, pretendo ser bem mais sucinto nos meus comentários e manter o foco nas palavras dos suttas, que elas sejam o centro e a maior parte do texto.  Como os trechos dos suttas possuem elementos que contrastam muito com outros sistemas propostos na época e hoje (governar por idéias próprias, segundo o Buda) resolvi fazer, não um resumo do que apresento nele sobre isso, mas um resumo dos contrastes com alguns sistemas de "idéias próprias" que tem sido erradamente apresentados como sistemas que Buda certamente defenderia. Vejamos então aqui nestes dois suttas como contrasta o sistema apresentado por Buda de sistemas defendidos por pessoas (inclusive monges, lamas, professores) falsamente apresentados como sistemas que Buda defende ou defenderia.

Parte 1 - Um monarca que gira a roda

Digha Nikaya 26
 Cakkavatti-Sihanada Sutta
O Rugido do Leão ao Girar a Roda

2. “Certa vez, bhikkhus, houve um monarca chamado Dalhanemi que girou a roda, um monarca justo que governou de acordo com o Dhamma; conquistador dos quatro pontos cardeais, que estabeleceu a segurança no seu reino e que possuía os sete tesouros. Que são: a Roda Preciosa, o Elefante Precioso, o Cavalo Precioso, a Jóia Preciosa, a Mulher Preciosa, o Tesoureiro Precioso e como sétimo o Conselheiro Precioso. Ele tinha mais de mil filhos que eram corajosos e heroicos e que aniquilavam os exércitos inimigos. Ele governava tendo conquistado esta terra circundada pelo mar, sem bastão ou espada, através do Dhamma. Mas se ele deixasse a vida em família e seguisse a vida santa, então ele se tornaria um arahant, um Buda perfeitamente iluminado, aquele que remove o véu do mundo.

Este é o primeiro texto que sido citada em parte, distorcendo o contexto e traduzido omitindo palavras em novas "traduções" (na verdade novas versões, que longe de serem traduções literais ou mesmo transliterações não só traduzem certas palavras de forma diferente como também retiram algumas quando o sentido não lhes convém ao que pensam). Mas vamos prestar muita atenção a cada detalhe.

"Certa vez, bhikkhus, houve um monarca chamado Dalhanemi que girou a roda"

Girar a roda do dhamma não é algo que alguém faça por acaso, sabemos, alguém de uma rara capacidade é que pode fazer isso. E o que era essa pessoa? Um MONARCA, ou como em outras traduções em português, inglês e espanhol, um REI. Não era um presidente, não era um ditador, não era um conselho, não era nenhum tipo de ministro nem imperador (como outra tradução errônea também distorce colocando a palavra imperador, que é muito diferente do sentido da palavra rei), era um rei, monarca.

"um monarca justo que governou de acordo com o Dhamma"

Novamente a palavra monarca, só que não qualquer monarca, mas que é justo e que governou de acordo com o Dhamma, por isso mesmo é justo. Aqui não existe a mínima possibilidade em se falar de democracia, igualdade, justiça social ou qualquer outra concepção vazia. Ser justo é governar segundo um padrão, o do dhamma, e ponto final, como também veremos depois. Não se muda esse padrão, é um monarca justo que governa de acordo com o Dhamma, não se pergunta à população "o que vocês acham? Devemos governar de acordo com o dhamma ou vocês têm outra proposta?".

"conquistador dos quatro pontos cardeais"

Ele conquista, ele não se conforma a sua territorialidade ou nacionalidade. isso pode chocar alguns que pensam que Buda era um anarquista ou liberal "laissez-faire" do comportamento geral (deixe ser, deixe estar, "deixai fazer, deixai ir, deixai passar, o mundo vai por si mesmo").

"que estabeleceu a segurança no seu reino e que possuía os sete tesouros. Que são: a Roda Preciosa, o Elefante Precioso, o Cavalo Precioso, a Jóia Preciosa, a Mulher Preciosa, o Tesoureiro Precioso e como sétimo o Conselheiro Precioso"

Ele tem posses, ou bens, podemos fazer um pequena concessão aqui por falta de melhor palavra para esse tradutor, mas de qualquer forma ele tem, e entre o que ele tem se encontram tesouros, animais e uma mulher. Um rei, por definição possui, seja o tesouro, a moeda, a terra, ou tudo isso junto. A ideia de uma república ou democracia (de um governante apenas administrador) não parece contemplada aqui, mas a ideia de um monarca, um rei, está quase já completamente descrita, mesmo que se exclua maliciosamente a palavra do texto.

"Ele tinha mais de mil filhos que eram corajosos e heroicos e que aniquilavam os exércitos inimigos"

Mil filhos e soldados, certamente espantoso para os pacifistas budistas, pois que ANIQUILAVAM OS EXÉRCITOS INIMIGOS. Veja bem, ele não negociava, não convencia, não convertia os exércitos, ele aniquilava.

"Ele governava tendo conquistado esta terra circundada pelo mar, sem bastão ou espada, através do Dhamma"

Ele governa tendo conquistado pelo Dhamma, não pela espada, então quando aniquilava exércitos? Quando convencia a largar as armas dirão outros. Não, ele aniquilava quando falhavam as conversações, quando era atacado, quando em terra que governava surgiam revolucionários armados, obviamente ele os ANIQUILAVA. Se você é um rei e seu país é atacado sem aviso e sem negociação, você diz ao povo que se renda? Um rei que governa segundo o Dhamma aniquilava o inimigo. E expandia seu reinado e governava através do dhamma.

"Mas se ele deixasse a vida em família e seguisse a vida santa, então ele se tornaria um arahant, um Buda perfeitamente iluminado, aquele que remove o véu do mundo"

Ele estava pronto para ser um Buda, veja que aqui não está escrito apenas um arahant, mas um Buda, o que realmente acontece nesse história, como veremos e que é o padrão em outras história contadas pelo Buda. A seguir veremos características precisas desse monarca nos deveres de um monarca que gira a roda.